Resistência ucraniana abrandou a invasão russa, mas uma ofensiva esmagadora ainda é opção

Surpreendidas pela defesa ucraniana nas ruas das grandes cidades, as forças armadas da Rússia podem tentar “saída airosa” para o conflito ou podem intensificar o ataque. Mas não sem grandes custos humanos e reputacionais.

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Tanque destruído em Bucha, nos arredores de Kiev Reuters/MAKSIM LEVIN

E ao quinto dia de hostilidades, com delegações dos dois países reunidas na cidade bielorrussa de Gomel para negociar, a invasão da Ucrânia pela Rússia parece ter chegado a um impasse. Sem terem conseguido conquistar nenhuma das grandes cidades ucranianas, as tropas russas estiveram entre domingo e segunda-feira a fazer aquilo que em linguagem militar se chama uma pausa operacional, sobretudo nas frentes de ataque a Kiev e a Kharkiv. Não se tratou de uma paragem total da ofensiva, até porque houve bombardeamentos em ambas as cidades, e com vítimas civis, mas também não houve avanços territoriais.

O abrandamento deverá ter servido, de acordo com a análise do Institute For the Study of War, para reforçar e reabastecer as unidades na frente de combate, agora que se tornou evidente para as forças armadas russas que “o conflito [será] maior, mais complicado e mais prolongado do que originalmente tinham pensado”. Com esta recalibragem, “o rumo da guerra pode mudar rapidamente a favor da Rússia se os militares tiverem correctamente identificado as suas falhas e tratado delas”, avisa o instituto.

A pausa russa deveu-se em grande medida à defesa ucraniana, sobretudo em meio urbano, o que terá surpreendido tanto Vladimir Putin como os países europeus que no fim-de-semana se multiplicaram em ofertas de ajuda humanitária e armamento à Ucrânia. “A Rússia não estava à espera deste tipo de resistência”, analisa o historiador militar António José Telo. “Aparentemente esperava que uma entrada em força provocaria o colapso do regime.”

Os ucranianos apostaram numa “resistência de longo prazo centrada nas zonas urbanas”, o que “é um caminho mais difícil e doloroso” porque assenta em reservistas e milícias paramilitares, mas que é eficaz porque as cidades são terrenos “muito difíceis para uma força atacante”, continua Telo.

“Os russos queriam evitar a todo o custo uma guerra urbana”, comenta também o general António Faria Menezes, antigo comandante operacional do Exército português. Como o objectivo político da incursão militar era depor o Presidente ucraniano, Volodimir Zelensky, e o que se esperava era “uma rendição rápida de Kiev”, o general diz que “o potencial bélico da manobra militar não foi totalmente utilizado”.

Aqui chegados, e com base no que tem lido e visto, Faria Menezes não exclui um esmagamento da defesa ucraniana pelas forças russas, mas com enormes custos humanos e reputacionais. Para vencer a feroz resistência que tem encontrado nas ruas de Kiev e Kharkiv, a Rússia teria de recorrer a artilharia pesada e bombardeamentos que provocariam “um banho de sangue”, afirma António Telo. “Isso iria marcá-la por séculos.”

Tanto mais que, acrescenta Faria Menezes, não é possível “uma diabolização do inimigo” como aconteceu nas intervenções militares na Síria ou na Tchechénia, em que do outro lado estavam pessoas com quem os soldados tinham poucas ou nenhumas afinidades. “É muito difícil para um comandante militar convencer um russo a usar todos os meios de destruição que tem contra um povo que lhe diz tanto”, opina o general.

António Telo acrescenta que “uma operação desse tipo seria extremamente desmoralizadora para as forças russas”, já que em vez de ser “uma luta limpa e distante, seria próxima e sangrenta”.

A alternativa que pode estar em cima da mesa para os russos, de acordo com fontes militares norte-americanas ouvidas pela Reuters, é um cerco a Kiev, um pouco à semelhança do que se fazia em tempos medievais. Os ucranianos ficariam rodeados e, previsivelmente, sem acesso aos serviços básicos de água, luz e gás. “Iria também ser um banho de sangue, mas mais a longo prazo”, diz António Telo. Isso poderia eventualmente forçar uma rendição ucraniana, mas até lá haveria tempo para “a indignação crescer” e “criar uma repulsa face ao regime” de Putin.

Acresce que em poucos dias Volodimir Zelensky passou de ser um Presidente em que poucos apostariam as suas fichas para se tornar num líder respeitado na comunidade internacional. “Ganhou espaço, tornou-se numa personalidade”, analisa Faria Menezes. E quanto mais tempo passa, mais bicuda se torna a situação para o lado russo. “O abate de um mártir não lhes interessa.”

Neste momento, com as frentes de Kiev, Kharkiv e Donbass praticamente estagnadas, é a sul que as forças russas registam maiores avanços, com a aproximação a Mariupol e Zaporizhzhya. As tropas ucranianas que mantêm a frente de guerra junto às regiões separatistas de Donetsk e Lugansk podem ver-se cercadas e isoladas se a Rússia continuar a fazer progressos.

“Do ponto de vista militar, as opções da Rússia são todas más”, afirma António José Telo, que acrescenta mesmo: “Não me admiraria que tentasse uma retirada airosa.” Uma renegociação dos Acordos de Minsk, com uma solução política consensual sobre as regiões separatistas e a Crimeia, seria uma via.

O general Faria Menezes aponta essa como uma das hipóteses, mas acredita que “o exército russo, depois de tanto empenhamento, não vai querer sair sem uma vitória”, o que significaria um novo desenho das fronteiras ucranianas, em que a Rússia poderia ficar com parte dos territórios que já ocupou.

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