Propostas no tempo que passa

Atrevo-me a fazer duas propostas, dois desafios a um governo maioritário que sempre considerei uma necessidade.

Dois escritos antigos e reencontrados e o poema de Manuel Alegre foram inspiração para este artigo. Memória desses anos 60 e do livro O Canto e as Armas que circulava clandestinamente, dactilografado, entregue por mãos delicadas na escadaria dum velho prédio de Alfama. Para a minha geração, a libertação começa a ser um passado longínquo.

Mas para a metade leste da Europa, após as revoltas sufocadas pelo Exército Vermelho na Hungria, Checoslováquia e as perseguições na Polónia, a memória estará bem mais viva da Liberdade conseguida após a queda do Muro de Berlim, saudada pelo violoncelo de Rostropovitch, pela 9.ª de Beethoven e a alegria e emoção da abertura ao Ocidente e aos seus valores. Nesse ano, em fevereiro de 89 visitara Berlim-Leste, no contexto de reunião científica em Berlim Ocidental. Provocou-me a mesma angústia e opressão que sentira em Praga em 1977, onde silenciosamente prestei tributo a Jan Pallach na Praça Venceslau, onde hoje está uma chama ardente a recordar o seu martírio e o preço da Liberdade. São valores, agora que o exército russo se prepara para esmagar uma nação livre, invocando uma abusiva e incompleta interpretação da História. Também nós tivemos, na Ibéria, uma história comum com Espanha e hoje somos exemplos de coexistência, cooperação e fraternidade exemplares. Passemos adiante.

Eduardo Marçal Grilo (E.M.G.) em artigo notável neste jornal (21/2/2022) exortava-nos a ser exigentes para com a Política, em época de maioria absoluta no Parlamento, ultrapassando querelas vãs e ineficazes. Não podia estar mais de acordo. É o exercício da cidadania informada, participativa e exigente, pilar da acção política nas sociedades abertas e nas democracias liberais. Essa intervenção não se esgota no debate parlamentar, é um desafio para o espaço público (public domain) activo, com reflexão informada, dos cidadãos às instituições, privilegiando cultura de empenhamento e abertura à sociedade e aos seus problemas. E para os partidos, de que se espera e exige conhecimento dos problemas e propostas claras e diversificadas para a sua resolução e, finalmente, uma imprensa livre, independente e isenta. Este é o espaço público de discussão aberta, tolerante e informada, que é paradigma da sociedade aberta, livre, meritocrática e civilizada das democracias liberais e cujo declínio recente, no nosso meio, E.M.G. identificou com a prevalência do acessório sobre o essencial na discussão política.

À exigência da cidadania atrevia-me a juntar dois outros requisitos que são, também, pilares da vivência democrática: credibilidade e accountability. A credibilidade tão invocada no discurso político tem requisitos bem claros: competência na área de intervenção, a qual costuma ir a par com conhecimento e experiência (saber de experiência feito), sentido de responsabilidade e exigência individual. É indispensável em todas as actividades, da Medicina à Economia e à Engenharia, do Direito à Justiça, à Administração pública e privada. É atributo da confiança e é transversal às pessoas, às instituições e aos Estados. Devia ser condição sine qua non para exercício de liderança profissional, de grupos, de empresas e também na política. Accountability é um conceito mais subtil. Costuma ser reduzido a prestação de contas, mas é mais complexo. Engloba a exigência de bem fazer e o hábito cultural interiorizado de dar contas do que se fez, como um dever ético indeclinável. Precisa de ecologia favorável caracterizada por cultura de avaliação rigorosa nas instituições e um sistema efectivo de garantia de equilíbrio, de adequação de procedimentos, de rigor e justiça nas consequências. Nem sempre privilegiou a actuação política, como bem recordaremos.

Atrevo-me a fazer duas propostas, dois desafios a um Governo maioritário que sempre considerei uma necessidade. Primeiro, a reforma do sistema eleitoral. Muito se tem escrito sobre a necessidade de aproximar o cidadão-eleitor do seu representante, conferindo-lhe efectiva representatividade e responsabilidade perante o seu eleitorado e libertar o deputado da tutela exclusiva dos directórios partidários. A proposta recente da SEDES, instituição independente e prestigiada, da constituição de ciclos uninominais com um ciclo de compensação nacional, corporiza muito bem aspiração antiga de muitos de nós.

Mas vou um pouco mais longe. A incompetência revelada na votação dos emigrantes teve uma enorme vantagem: acentuou a necessidade de repensar a sua representatividade parlamentar. Foi excelente e um dever patriótico ter promovido o recenseamento automático dos emigrantes. Assinalou que desejamos o seu contributo para a res publica e não apenas as suas remessas de dinheiro. Mas atribuir dois deputados no universo da emigração europeia e outros dois ao resto do mundo, quando estarão registados mais de um milhão de eleitores é inaceitável, é uma ofensa.

E este é, também, o meu pedido ao novo Governo. Em época da revolução digital reorganizem-se os cadernos eleitorais, expurguem-se os falecidos e integrem os emigrantes nos novos círculos eleitorais da sua origem. Não queremos nós que eles mantenham a vinculação à sua região natal, que contribuam para o seu progresso não apenas com as suas poupanças e despesas nas visitas da Saudade nas férias e no Natal, mas que se envolvam no progresso da sua terra? Fazer esta reforma dos cadernos eleitorais é uma questão técnica, é fácil. Introduzir a reforma do sistema eleitoral já é uma questão de coragem, de vontade política, de respeito pela cidadania e marca da qualidade dum Governo!

O segundo desafio é sobre a Saúde e a Educação. Impõe-se um compromisso que ultrapasse as proclamações ideológicas, a acção de curto prazo, o clientelismo partidário, e que se promovam as reformas necessárias, já discutidas, e tantas vezes mencionadas em artigos publicados na imprensa, sem as quais a sua sustentabilidade estará comprometida e a sua missão como factor de coesão social, de equidade no acesso às oportunidades e de combate às desigualdades, falhará. Como país, não podemos dar-nos ao luxo de ignorar os sectores não públicos na Educação e na Saúde e não compatibilizar a sua actividade no contexto dum Sistema alargado de prestação de serviços à nossa população. Um desperdício que a história não perdoaria.

Há anos, os alunos da Faculdade de Medicina lançaram-me um desafio: mudar o país ou mudar de país? Dessa palestra resultou um artigo que a imprensa publicou. Cito o último parágrafo. “Mudar o país é difícil, mas é um desafio estimulante, requer coragem, persistência para alterar hábitos e comportamentos. Mudar de país, ver como se faz e depois voltar, pode ajudar!”

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