Licença para mamar

Eu acredito que um dos motivos pelos quais tantas mulheres chegam à amamentação no escuro é por isto ainda ser tabu. É por as pessoas continuarem, nervosas, a pôr panos em cima do assunto.

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"A inquietação que um mamilo feminino traz é caso de estudo" Helena Lopes/Unsplash

Antes de amamentar a imagem que tinha do processo era endeusada: uma mulher calma, sorridente, que emana paz, alegrias e namastês, enquanto nutre de amor e de vitaminas o seu bebé. Os dois iluminados e envoltos numa nuvem de tranquilidade. Mãe e bebé numa sintonia perfeita: um cenário de quadro renascentista, ao som de música clássica. Tendo esta referência, foi um choque para mim, nova e inexperiente, dar comigo sentada na cama com um pequeno ser aos gritos no colo, as maminhas duras como pedra a ganhar proporções assustadoras, coberta de suor, despenteada, com um saco de ervilhas a cheirar a congelador encostado ao peito, a sentir-me um fracasso enquanto mulher, enquanto mãe, enquanto cuidadora. De madrugada, ao som do choro do recém-nascido, fazia juntar o meu. O medo a crescer, as maminhas a crescer. Por que não estava eu plena, embalada pelo incrível deleite da maternidade, a vibrar em luz e lantejoulas? Por que não estava tudo a fluir como nos anúncios e nos posts? Seguiu-se um turbilhão de opiniões, desinformação, exemplos pessoais desanimadores, de olhares que julgam, panos que cobrem, debates éticos, pesagens sucessivas do bebé, insónias e conselhos incessantes.

Algumas pessoas ficavam muito aflitas se eu estava em público de mama ao léu. E faziam juntar ao rol de preocupações que eu já carregava, entre as quais a de conferir se a mandíbula do bebé estava no ângulo apropriado para garantir a tão ambicionada pega perfeita, as suas próprias preocupações de que outros pudessem ter acesso visual, pasmem, ao cor-de-rosa de um mamilo meu. Em vez de contribuírem para me relaxar, transmitiam-me o seu próprio embaraço e faziam questão de me providenciar toda uma escolta de cobertura, para que ninguém tivesse de ser perturbado pelo almoço do meu bebé.

Punham o próprio incómodo e o incómodo alheio à frente das necessidades básicas de um recém-nascido e do bem-estar da sua mãe. Em vez de naturalizarem o que há de mais natural no mundo, um bebé a alimentar-se, ficavam num nervosismo tal que não conseguiam evitar demonstrá-lo. A inquietação que um mamilo feminino traz é caso de estudo. Eu proponho que as pessoas aprendam a lidar com o próprio desconforto e não o passem a quem não tem nada a ver com ele e quem já tem o suficiente com o que se desassosegar, como tentar dormir três horas seguidas ou garantir que outro ser se mantém vivo.

No grupo de WhatsApp da minha família, recebi alguns conselhos de amamentação de primas que falavam abertamente de tipos de bombas, mamilos de silicone e mastites, e o desconforto que assolou o resto do grupo, principalmente os elementos masculinos, foi evidente.

Eu acredito que um dos motivos pelos quais tantas mulheres chegam à amamentação no escuro é por isto ainda ser tabu. É por as pessoas continuarem, nervosas, a pôr panos em cima do assunto. É por quererem desviar a conversa se esta implica terem de passar pelo inconveniente de vislumbrar um mamilo rachado.

No meio da neblina, da dor e do cansaço veio a ajuda, e, com ela, a esperança. Percebi que toda esta travessia da amamentação e da maternidade melhorava com apoio. Percebi que era preciso aprender. E que não era para toda a gente, embora sentisse que era para mim. Tive algumas complicações de nomes estranhos. Saía-me leite, pus e sangue. Como em qualquer assunto, a ajuda deve vir de profissionais. E eles vieram, com as suas mãos e técnicas milagrosas. Graças a eles, fiquei a conhecer melhor a anatomia da maminha e fiquei fascinada com o seu funcionamento e com os seus canais que, assim como rios, correm e bloqueiam. Senti-me apoiada, informada e confiante. Aos poucos, a dança desarticulada do início, movida a medo, deu lugar a uma coreografia coordenada.

E tudo se tornou mais simples. Continuava a não ser uma deusa a amamentar um anjo, mas era melhor do que isso, porque era real. E só o real permite o cheiro da nuca de um bebé, os barulhinhos de conforto enquanto mama e a gota de leite que escorre pelo queixo e se limpa devagarinho porque, entretanto, adormeceu no nosso peito.

As mães só precisam de compreensão, carinho e apoio. E de tempo e calma para sentirem como agir. Se as licenças de maternidade aumentassem para o tempo que a Organização Mundial de Saúde estipula como ideal para a amamentação exclusiva, a pressão que recai sobre as mães diminuía. Nem todas as mães quererão ou poderão amamentar e nem todas quererão cumprir este tempo. Mas as mães deveriam poder escolher. Afinal, a lei é sobre elas. Quanto menos barreiras erguerem ao processo, menos nebuloso se torna. Sejam elas as barreiras silenciosas, os desvios de assunto, os julgamentos, as opiniões mordazes ou as exigências laborais.

Se há coisa que senti ao passar por esta jornada é que as mães deveriam ter todas as licenças. Principalmente a de amamentar sem pedir licença. Dêem às mães licença para amamentar. E aos bebés licença para mamar.

Por isso, com licença: Deixem as mulheres amamentar em paz. Deixem os bebés mamar sossegados. Deixem as mulheres falarem sobre isso como e quando quiserem. E, caso não estejam dispostos a isso, só me ocorre dizer, com todo o respeito: Vão mamar!

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