O triângulo

Estes dias estive a ler The Code Breaker, de Walter Isaacson. É um livro extenso, com uma narrativa emocionante sobre um grande avanço científico no desenvolvimento de um método de edição de genoma – sistema CRISPR, que culminou em 2020 com a atribuição do Prémio Nobel da Química a Jennifer Doudna e Emmanuelle Charpentier.

No meio da narrativa há um apontamento que sobressai. Quando a Segunda Guerra Mundial estava a terminar, o grande engenheiro e funcionário público Vannevar Bush argumentou que o mecanismo de inovação dos Estados Unidos exigiria uma parceria de três vias entre governo, empresas e academia. A recomendação de Bush foi a de que o governo não deveria construir grandes laboratórios de investigação próprios, como havia feito com o projeto da bomba atómica (Manhattan Project), mas sim financiar investigação em universidades e laboratórios corporativos. Essa parceria governo-empresas-academia tem produzido as grandes inovações que impulsionaram a economia dos Estados Unidos no período pós-guerra, incluindo transístores, microchips, computadores, GPS, lasers, Internet, etc.

Mas porque é que em Portugal o triângulo não funciona? Obviamente que há várias razões e o mais fácil é desculparmo-nos com a localização periférica relativamente à Europa, a dimensão territorial reduzida e o baixo peso relativo da nossa economia na União Europeia.

Recuso-me a ir por aí. Tendo em conta a minha experiência nos Estados Unidos e em Portugal, há razões latentes associadas às três dimensões do triângulo: 1) instabilidade nas políticas públicas da academia (ensino superior e ciência); 2) falta de cultura inovadora e e dimensão internacional das nossas empresas; e 3) academia ainda distante das empresas e paralisada nacionalmente com limitados recursos financeiros.

Antes de começar a minha argumentação, faço uma ressalva: nem tudo é mau e tem havido progressos nos últimos anos no desenvolvimento deste triângulo.

O ensino superior e a ciência estão interligados por definição. Embora possa haver ciência sem ensino superior, não há ensino superior sem ciência. A ciência geralmente avança não por grandes saltos de descoberta, mas por pequenos passos orientados, o que exige previsibilidade do sistema.

Por exemplo, o Governo conseguiu com a norma transitória do Decreto-Lei n.º 57/2016 dar temporariamente mais estabilidade aos jovens doutorados, através de contratos de até seis anos concedidos pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). Mas o que acontecerá daqui a cerca de três anos quando os contratos terminarem? Provavelmente, os contratos não serão renovados pela FCT. Estarão os laboratórios colaborativos (ou associados) capazes de assumirem responsabilidades na contratação dos mesmos? Teremos então um sistema empresarial mais maduro para absorver esses investigadores? Que políticas e incentivos estão previstos para estimular a incorporação desses doutorados nas empresas? Há ainda muita imprevisibilidade.

A ainda baixa internacionalização da nossa academia e a falta de cultura de inovação das nossas empresas são materializadas pelo baixo número de projetos financiados pelos programas europeus. Por exemplo, os Países Baixos têm cerca de duas vezes a nossa população, mas têm quase seis vezes mais Consolidator Grants financiadas pelo European Research Council. O triângulo do conhecimento do European Institute of Innovation & Technology (fundado em 2008) é uma oportunidade ainda distante da nossa realidade. Nós precisamos de mais investimento interno para alavancarmos a nossa ciência e ficarmos mais competitivos no contexto europeu.

Há um outro elemento que é frequentemente adicionado à tríade governo-empresas-academia dos Estados Unidos - as fundações filantrópicas. Quantas fundações são criadas em Portugal com fins específicos de apoio à ciência? Para além da Fundação Calouste Gulbenkian, a Fundação Champalimaud é uma bênção nacional, mas insuficiente para substituir o Governo nas suas funções de apoio à ciência. Será o número reduzido de fundações filantrópicas resultado da falta de cultura científica das empresas e dos empregadores ao longo das últimas décadas? Relembro que Jennifer Doudna teve apoio da Gates Foundation no seu caminho para o sistema CRISPR.

O ensino superior, fortemente regulado e pouco flexível nos modelos de gestão, condiciona as instituições na procura de soluções mobilizadoras da aplicação da investigação e de ligação às empresas. Os critérios de funcionamento dos seus ciclos de estudos são constantemente alterados. O reconhecimento de diplomas de estudantes internacionais para atribuição de bolsas é bastante moroso. Não estará na altura de aligeirar a regulamentação e dar mais liberdade às instituições para definirem o seu destino e para se internacionalizarem? O nível de regulação deve acompanhar a maturidade das instituições.

Há uma miríade de exemplos que pode ser levantada para identificar as lacunas do nosso triângulo. Contudo, não haverá triângulos, pentágonos ou icosaedros que funcionem, se não houver financiamento, seja ele público ou privado. Não podemos andar a retocar o sistema e olhar para os papers e as métricas para demonstrar a nossa evolução científica. Se o país quer avançar cientificamente, e quer ser competitivo nos programas europeus de financiamento, então procuremos soluções que nos permitam rapidamente convergir com a média da União Europeia e transformar os 1,5% em 3% do PIB nacional de investimento em I&D.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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