"MyLifeBits": Um "backup" da vida toda

A forma como as sociedades e os indivíduos se relacionam com a memória é uma das questões culturais, políticas e filosóficas mais interessantes dos nossos tempos. É-o não só porque representa um elemento da identidade, de auto-retrato de uma sociedade, mas também porque, nos nossos dias, o sentido e a forma da memória está a mudar muito rapidamente nas democracias tecnologicamente desenvolvidas.Já várias vezes escrevi sobre a crescente precariedade da memória como factor cultural, o encurtamento, por via dos mecanismos da novidade mediática dominantes na cultura de massas, da memória social útil - daquilo que nos lembramos como elemento de moderação ou incentivo da acção, que nos "lembra" das consequências positivas ou negativas de uma acção.Mas há outro aspecto em que mudanças estão também a dar-se no exacto sentido contrário: existem hoje tecnologias que, a curto prazo, dez anos no máximo, permitem registar todos ou quase todos os sinais que nós próprios produzimos, individual e colectivamente, como marcas da nossa memória. Uma das mais interessantes é uma linha de investigação de "software" do Media Presence Research Group da Microsoft, desenvolvida por Gordon Bell. O objectivo é criar "software" que, explorando o "hardware" hoje disponível, permita às pessoas fazer uma espécie de "backup" da sua vida toda. A ideia é mais revolucionária tem consequências mais profundas do que parece à primeira vista. É, no entanto, já relativamente antiga. Se descontarmos os sonhos utópicos dos coleccionadores, bibliófilos, bibliotecários e arquivistas loucos que povoam os livros de Borges ou de Umberto Eco, ou , de um modo indirecto, os de Kafka e Orwell, a primeira exposição desta ideia é o conceito de "Memex" exposto em 1946 por Vannevar Bush. Bush, considerado o autor do conceito de hipertexto - palavra que o nosso Dicionário da Academia olimpicamente ignorou -, entendia o "Memex" um instrumento, um "device", "no qual um indivíduo armazena todos os seus livros, registos e comunicações, e que pode ser consultado com enorme velocidade e flexibilidade, por meios mecânicos". Em 1946, não existiam os "meios mecânicos" para conseguir este objectivo, mas hoje o meu parceiro aqui na mesa ao lado tem um computador-agenda com maior poder de processamento do que foi necessário para dirigir as missões Apolo à Lua, e eu levo numa pasta um disco duro portátil de 80 GB, com dezenas de milhares de documentos, textos, imagens e bases de dados, uma verdadeira biblioteca. E, mesmo assim, está metade vazio. Daqui a uns anos, pelo mesmo preço, posso andar com um disco de um terabite, onde cabe tudo o que sou capaz de guardar, ler, escrever, ouvir e ver uma vida inteira, e posso dizer-vos que nesse campo me esforço muito. O projecto de Gordon Bell do MyLifeBits, que já teve uma versão anterior chamada CyberAll, é o de construir um "software" que aproveite as vantagens da actual capacidade gigantesca de armazenamento de dados, para permitir não só o arquivar o que hoje habitualmente se guarda num computador pessoal - textos, algumas fotos, muito pouco vídeo - mas literalmente tudo o que pode ser digitalizado, ou seja também literalmente tudo. A ideia não é propriamente acabar com o papel, ou com os álbuns de fotografias, ou as caixas de sapatos com cartas e recibos, mas sim permitir a quem quiser fazer uma espécie de diário absoluto em que pode gravar centenas de horas de vídeo, centenas de milhares de fotografias, milhões de documentos, toda a sua colecção de discos e livros, já para não falar das suas comunicações electrónicas, etc., etc., e... mesmo assim sobrar espaço. Novos processos de anotação, por exemplo por voz, podem ser anexados às fotografias, do género: "Este aqui é o gato da vizinha", ou "ficavas tão bem com esse vestido", ou "nesse dia estava um temporal", ou "tinha acabado de perder na roleta e é por isso que estava com aquela cara", etc., etc.Sobra, dirão, a "vida interior", que ainda não é gravável em disco duro sobre forma digital. Se querem que vos diga, suspeito até que tal venha a ser possível, permitindo-nos recriar determinados "estados de alma" ou impressões e sensações passadas. Mas mesmo que não o seja tão cedo, vai-se perceber até que ponto a acumulação maciça de palavras, sons imagens, cheiros (também é possível), presos entre si na forma como o nosso cérebro os liga por associação - isso é tarefa do "software" -, nos vai parecer próximo do retrato "interior" da nossa mente. É muito uma questão de quantidade, porque a quantidade gera a complexidade.É possível imaginar várias consequências positivas e negativas da generalização de algo como o MyLifeBits, que pode vir a ser incluído no sistema operativo Windows do futuro. As negativas são fáceis de enunciar e têm a ver com a privacidade. No entanto, um "software" do tipo do MyLifeBits não acrescenta mais riscos de violação da privacidade do que aqueles que já estão hoje presentes no enorme poder da vigilância e intrusão do sistema de informação digital. O MyLifeBits permitirá que A roube a "vida" de B, mas já hoje o pode fazer, se for informaticamente mais letrado. Pode-se, aliás, imaginar uma nova indústria criminosa de venda de "vidas" a "voyeurs" ou a escritores sem imaginação, mas nos "newsgroups" da Internet já há um pouco desses roubos. Uma segunda consequência negativa, com efeitos mais difíceis de antever, é a criação de uma espécie de vontade de bloquear o esquecimento, porque o esquecimento é um elemento decisivo da memória, factor de liberdade e felicidade. Ser incapaz de esquecer é uma doença mental, ou o resultado de uma agressão ao cérebro. Com o MyLifeBits, ou outra forma de "Memex", um indivíduo pode ficar obsessivamente preso a uma parte da sua vida, reviver dia-a-dia no presente, um dia do seu já longínquo passado, na medida o que pode ver o que escreveu, o que gravou, o que filmou, os comentários que então acrescentou, as conversas que teve. O principal problema do "software" do MyLifeBits é exactamente fornecer os instrumentos de associação para todo este material, visto que os processos hierárquicos e formais das bases de dados não são os normais na recordação humana. Assim, "voando", o meu pensamento volta àquele sorriso, ao cheiro daquele dia quente, àquelas palavras decisivas, àquela viagem inesquecível, agora tão inesquecível como tudo o resto, pela existência de uma memória total e pristina. Tudo isto gerará, sem dúvida, comportamentos novos, dependências novas. Dos adolescentes aos velhos, a vida pode começar a ser olhada de maneira diferente, no espelho desse infinito diário que tenderá, como o mapa ideal, a ter o tamanho da terra que representa. Por outro lado, ter memória é saber mais, é uma oportunidade de não repetir erros, é, ou pode ser, um experiência de felicidade, de preenchimento subjectivo, de paz interior. Não custa imaginar o papel afectivo que o "Memex" pessoal, partilhado em todo ou em parte, possa ter- o novo tipo de herança que pais deixarão aos filhos, a recolha das últimas palavras, as imagens da estima ou do amor. Sempre uma "construção", sempre subjectiva, porque, mesmo com muitos terabites, o MyLifeBits é uma "obra" feita de escolhas, da auto-imagem que fazemos de nós. Podemos inclusive imaginar que à sua volta apareça um novo tipo de obras de arte, uma nova percepção estética, que vem de novos instrumentos de interacção com a realidade. As implicações sociais deste tipo de "devices" são também enormes e justificam que mais tarde volte a elas. É possível imaginar formas de "Memex" grupais ou societais, formas, no fundo, mais evoluídas de património transmissível num sentido lato. Teríamos que aprender então novos modos de nos relacionarmos connosco próprios na colectividade, compreendendo que as sociedades onde nada se esquece são certamente totalitárias, mesmo aquelas em que tudo se pode lembrar pelo crivo da cultura, são mais livres e democráticas.

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