A sociedade já decretou a endemia

Os cidadãos foram sempre mais rápidos a reagir à pandemia do que as autoridades, fosse quando se isolaram perante uma ameaça que desconheciam, seja agora quando tentam levar uma vida normal.

Imagine-se que no início do Outono alguém previa que Portugal viria a registar uma média superior a 60 mil infecções de covid-19 por dia. Nessa altura, contavam-se cerca de 800 casos por dia, não se ouvira ainda falar da Ómicron e um cenário como o que estamos a viver seria motivo de natural aflição colectiva. No último mês, entretanto, registaram-se mais infecções do que em todo o ano anterior, a incidência continua na estratosfera e o que está a acontecer? Os cidadãos andam rotineiramente pelos centros comerciais e restaurantes, a vida nocturna das cidades está activa, a economia vai funcionando e, apesar de haver mais de um milhão de pessoas em isolamento, o país vive de uma forma aparentemente normal.

Há nessa normalidade uma explicação racional e uma consequência inevitável: a baixa perigosidade das infecções e a protecção das vacinas reduziram o medo do contágio e, acto contínuo, os portugueses voltaram as costas à pandemia. Quando o Governo aplicar as recomendações do Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge, transformando os mecanismos de vigilância à covid-19, os efeitos práticos desta menorização do perigo serão nulos. As pessoas já os anteciparam na sua vida quotidiana. Nada de novo: os cidadãos foram sempre mais rápidos a reagir aos contextos da pandemia do que as autoridades, fosse quando se isolaram perante uma ameaça que desconheciam, seja agora quando tentam levar uma vida normal depois de perceberem que não há riscos extraordinários.

Há nesta atitude sinais de sensatez e inteligência suficientes para contrariar os que em tempos definiam o acatamento das instruções das autoridades de saúde como um sintoma de uma sociedade submissa e com falta de amor às liberdades individuais. O que se passou e está a passar mostra o contrário. Mostra uma sociedade autónoma, consciente e capaz de avaliar os riscos para decidir as suas vidas em conformidade. Se houve momentos em que a reclusão e o medo foram essenciais para conter a pandemia, agora o desejo de viver sem pavores é um estímulo de confiança que facilitará o regresso à normalidade.

Perante esta realidade, recomenda-se que as autoridades não se limitem a uma posição reactiva. Enquanto se espera um anúncio como os que os governos da Dinamarca ou da Irlanda fizeram, ao menos revelem os dados rigorosos e claros sobre internamentos e mortes que tenham a covid-19 como causa principal – a editora da Sociedade do PÚBLICO expôs esta necessidade de forma clara esta semana. Manter a opacidade não muda a percepção das pessoas sobre a presente ameaça do vírus: serve apenas para alimentar as absurdas teorias da conspiração que por aí circulam.

Sugerir correcção
Ler 29 comentários