Os números que a DGS precisa de mostrar

Fica esta dúvida: os dados não são divulgados, ou pura e simplesmente não existem, porque não há forma de os tratar? As duas opções são graves, e a segunda parece-me (ainda) pior. É que, se os dados não existem, as decisões são tomadas com base em quê?

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A comunicação de dados tem sido um problema desde o início da pandemia Reuters/KACPER PEMPEL

Passaram quase dois anos desde o início da pandemia, mas há algo que está longe de se tornar endémico: o tratamento e divulgação dos dados de saúde por parte de quem o deve fazer, neste caso a Direcção-Geral da Saúde (DGS).

Esta quinta-feira um trabalho do PÚBLICO mostra que há uma grande percentagem de internados em enfermarias e em unidades de cuidados intensivos dedicadas à covid-19 que lá estão por outras razões. Basta uma perna partida e um teste positivo ao SARS-CoV-2 e mais um número é acrescentado ao relatório diário da DGS. Mesmo nas UCI, como explica José Artur Paiva, director do Serviço de Medicina Intensiva do Hospital de São João, no Porto, mais de 40% dos internados estão ali por outros motivos: “São politraumatizados, tiveram enfartes do miocárdio e AVC graves.”

Sabemos e transmitimos estas informações, porque falamos com médicos e responsáveis hospitalares que vão dizendo o que se passa dentro da sua casa. Voltando ao São João, um dos maiores hospitais do país: há dez crianças e oito grávidas internadas em “enfermaria covid”, porque tiveram testes positivos à entrada do hospital, onde chegaram por outras razões clínicas. E, pasme-se, na quarta-feira, dos 20 doentes em UCI, só 11 entraram com diagnóstico principal de covid-19. Portanto, ao boletim da DGS, só aqui, retiraríamos nove doentes. E esta realidade vai-se multiplicando pelo país fora, andando os jornalistas à procura dos casos, dos relatos e dos dados que não chegam devidamente tratados por quem os deveria tratar e explicar.

Então e quando estas pessoas morrem, onde fica registado o óbito? Nos mortos por covid? João Araújo Correia, director do Serviço de Medicina Interna do Centro Hospitalar e Universitário do Porto, disse ao PÚBLICO, sobre os doentes internados na sua unidade hospitalar: “Alguns morrem das suas doenças, não de covid, mas vão contar para a estatística como ‘covids’.” Cabe à DGS esclarecer.

Aguardamos há meses o relatório de mortalidade de 2020. No Instituto Nacional de Estatística, os últimos dados sobre causas de morte referem-se a 2019. Precisamos de saber: de que morreram os portugueses em 2020 e em 2021? E os que estão registados como “mortos covid” morreram de facto por causa da doença? Alguma vez essa distinção vai ser feita? Alguma vez o saberemos?

Os dados têm sido um problema desde o início da pandemia. E isto não só enviesa toda a informação e toda a percepção que se tem da doença, como deixa caminho aberto para todas as teorias negacionistas e conspirativas que vão proliferando nas redes sociais.

E, depois, fica a dúvida: os dados não são divulgados, ou pura e simplesmente não existem, porque não há forma de os tratar? As duas opções são graves, e a segunda parece-me (ainda) pior. É que, se os dados não existem, as decisões são tomadas com base em quê?

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