Palavras que matam

Será que nos devemos rir quando há pessoas a morrer nos hospitais por causa desta gente “que pensa pela sua própria cabeça”?

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Os relatos de activistas antivacinas a morrer por covid-19 correm o mundo Reuters/JIRI SKACEL

“Vamos decretar o fim da pandemia.” Esta foi uma das propostas lançada pelo partido ADN, que reúne elementos dos extintos Médicos pela Verdade. Não sei como é que nos esquecemos de avisar o vírus, a Organização Mundial da Saúde e o mundo, que podemos acabar com a pandemia por decreto. Não sabia que era possível, a não ser na Coreia do Norte, onde todos sabemos que a pandemia nunca entrou, porque o vírus respeita lideranças de pulso forte.

Também aprendemos que os testes PCR não servem para nada, e que só morreram 152 pessoas por covid-19. Negacionismo? Nada disso. Negacionistas são só aqueles muito malucos que negam a existência do vírus. Estes são apenas pessoas que pensam pela sua própria cabeça e que fazem a sua pesquisa, tal como foi aconselhado fazer ao jornalista Carlos Daniel, por não compreender a fonte de arrojadas descobertas, “vá ao Google...”, com a credibilidade de quem levou um elefante de peluche para um debate, em que se discutem as questões principais no nosso país.

Isto vai dar muito material a Ricardo Araújo Pereira e a Joana Marques. E o riso é, sem dúvida, uma das defesas que a sociedade tem perante esta ameaça. Mas será que nos devemos rir quando há pessoas a morrer nos hospitais por causa desta gente “que pensa pela sua própria cabeça”? Os relatos de activistas antivacinas a morrer por covid-19 correm o mundo; em Portugal também já houve alguns antivacinas que por não se vacinarem passaram umas semanas no hospital, a gastar recursos, energia dos profissionais, e a roubar o lugar a tratamentos e exames menos urgentes de tantas outras doenças. E nós, sociedade, estamos a tolerar isto tudo, em nome da liberdade de expressão e do sentimento de que “isto passa”.

A pandemia há-de passar, mas este fanatismo, radicalização e desprezo pela comunidade científica ficam no meio de nós. E o que é que se faz com estas palavras que são um atentado à sociedade? Eu, do alto da minha ignorância e atento a melhores propostas, diria que há que legislar. Deixo à consideração de quem tem profundidade para filosofar sobre ética, direitos e deveres, liberdades e responsabilidades, sabendo que a propaganda antivacinas e a desvalorização da gravidade da pandemia matam mais do que o racismo, do que a violência doméstica, e já ninguém permite que estes sejam praticados, nem na forma de palavras. E bem, que evoluímos nesse sentido.

Palavras que matam. Ontem o país acordou para uma tragédia. Morreu uma criança de 6 anos. Houve quem festejasse. Houve quem culpasse os pais. O destilar de ódio nas redes sociais levou mesmo a que alguns “que pensam pela sua cabeça” nomeassem e identificassem ao detalhe todos os responsáveis pela decisão da vacinação das crianças, para atiçar os ódios dos antivacinas. A criança tinha a primeira dose da vacina, e também teria doença covid; no entanto, nada se sabe sobre a causa da sua morte e tudo o que se possa especular é cruel, nefasto e repugnante. O julgamento vem antes do resultado da autópsia, porque quem vive na raiva contra o mundo tem sempre o dedo no gatilho. O aproveitamento dos que negam as decisões da comunidade científica nacional, europeia e norte-americana é de uma imoralidade sem paralelo. As redes sociais tornaram-se viveiros de ódio e violência verbal que, se não forem regulados e monitorizados, nos trarão episódios como a invasão do Capitólio, ou as manifestações violentas dos grupos antivacinas que se vêem pela Europa fora.

Os meus profundos sentimentos a todos os que choram a perda deste menino, e que saibam perdoar o ódio e a maledicência, sustentados na ignorância colectiva, de uma sociedade que deixa proferir livremente palavras que matam.

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