Ainda o Martinho da Arcada

Antes das obras, podia-se tomar uma bica sentado. Essa conjugação de espaços (café e restaurante) terminou perversamente com a abertura do Martinho.

Em Dezembro, saíram no PÚBLICO online quatro artigos relativos ao Café Martinho da Arcada, entre 1984-1992. O jornalista João Pincha, a 7 de Janeiro, escreveu sobre os 240 anos do Martinho e o livro de Luís Machado, escritor que tem dinamizado o café desde 1992, ano em que a Associação Pessoana dos Amigos do Martinho da Arcada (APAMA) “se despediu”.

O facto certamente de o jornalista tentar focar vários aspectos dos 240 anos do velho Café foi determinante para algumas omissões que gostaria de preencher, consciente, e porque efectivamente assim é, das experiências pioneiras na defesa de um património por parte de estudantes do 11.º ano da Escola Secundária Marquês de Pombal, bem como na criação da APAMA.

Começarei pelo final da notícia porque aí reside o que pode causar alguma confusão nos leitores sobre a verdadeira data da classificação do Martinho da Arcada. Com efeito, nesse parágrafo menciona-se, e transcrevo, que “O Martinho da Arcada, ‘o próprio estabelecimento em si, na sua globalidade exterior e interior’, está classificado como imóvel de interesse público desde 1993”, quando anteriormente se referia que em 1984, “[…] a professora Maria do Carmo Vieira e os seus alunos lançam uma carta aberta […] para ‘salvar o café pessoano’”, não se especificando, no entanto, as consequências dessa acção, ou seja que dessa carta aberta resultara o despacho de 24 de Abril de 1985, do ministro Coimbra Martins, determinando, e transcrevo: 2.ª alteração da classificação como valor concelhio do interior do imóvel, para a classificação como imóvel de interesse público do próprio estabelecimento em si, na sua globalidade exterior e interior.” Na verdade, o Martinho, cujos 240 anos se festeja, não existiria seguramente, não fosse o movimento criado. Só a classificação do seu interior, enquanto Café, o salvou de bancos ou come-em-pé, o que se deve, sem qualquer dúvida, à carta aberta, não esquecendo a intervenção directa de sete deputados (10.4.85) que escreveram a Coimbra Martins em defesa da classificação do Martinho. Estão ainda entre nós, Manuel Alegre, José Manuel Mendes e Basílio Horta.

O registo do ano de 1993 encontra-se num link do Instituto Português do Património Arquitectónico (IPPA) que o próprio escritor Luís Machado me dera a conhecer quando falámos a propósito de algumas lacunas no seu livro, no período entre 1984-1992. O próprio me afirmou que “fora induzido em erro” e eu, depois de o consultar, optei por escrever no artigo I que o processo do Martinho se encontrava registado sem o mínimo de rigor, no IPPA, entre outros. Na verdade, é gritante a mediocridade da ficha elaborada e sem actualização (a última em 2007), estando a cronologia atabalhoada e confrangedora a Nota Histórico-Artística. Relevarei apenas, e por limitação de espaço, os dados apresentados por ordem cronológica: Despacho de 2-05-1984 da presidente do IPPC para se iniciar um processo de classificação, seguindo-se moção aprovada em reunião de 18-04-1984 da CM de Lisboa a propor a classificação. Para além de invertida a ordem dos factos porque primeiro houve a moção da APU (Eng. Rui Godinho), na qual se pedia ao MC a classificação do Martinho, aprovada por unanimidade, na reunião camarária de 16.4.84, erra-se também na data da reunião, conforme documentação que possuo. Na sequência cronológica, surgem praticamente a finalizá-la o despacho de concordância de 24-04-1985 do Ministro da Cultura e o Edital N.º 93/85 de 05-08-1985 da CM de Lisboa, saltando-se depois, e surpreendentemente, nove anos: Decreto n.º 45/93, DR, I Série-B, n.º 280, de 30-11-1993. Este decreto, no anexo II, entre uma avalancha de classificações, distribuídas por todo o país, assinala, entre muitíssimas, a do Martinho, repetindo o texto de 24.04.1985. Eis um exemplo flagrante de como funcionam as instituições estatais, fazendo apenas actualizações ad hoc, num constante menosprezo ou indiferença pelos factos. Sublinhe-se: a decisão aconteceu em 85 e não em 93.

Gostaria também de acentuar que o “apoio estatal de 30 mil contos anunciado por Cavaco Silva, em 1988, para obras de requalificação, que ficaram a cargo do arquitecto Raúl Hestnes Ferreira”, só foi possível porque, em 1986, professora, alunos e subscritores da carta aberta criaram a APAMA, tendo em vista três objectivos prioritários: dinamização cultural do Café, lançamento do concurso de ideias para a requalificação do Martinho e obtenção de subsídios de entidades estatais e particulares para futuras obras. Só uma associação cultural e sem fins lucrativos poderia receber esses subsídios, sendo óbvio que o Estado não poderia usar verba pública em prol de privados, ou seja, a família Mourão, sendo um dos seus membros tesoureiro da APAMA. Lamentavelmente, continua a fingir-se que o Martinho é ainda Café. No programa do concurso elaborado pela APAMA e na memória descritiva do arquitecto assim estava definido, mas não foi cumprido. Antes das obras, podia-se tomar uma bica sentado ou estar a trabalhar (eu tive essa experiência muitas vezes), cumprindo um horário: da abertura até às 11h30 e depois das 15h00. Essa conjugação de espaços (café e restaurante) terminou perversamente com a abertura do Martinho, em Fevereiro de 1990.

Luís Machado dinamiza o Martinho, desde 1992, e a APAMA dinamizou-o intensamente, e sempre com o apoio da gerência, de 1987 a 1989, ano em que o Martinho fechou para obras. O número variadíssimo de intervenientes encontra-se registado no artigo II que a esse propósito escrevi.

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