Teletrabalho: da oportunidade e da bondade de uma nova lei

Ao invés do que alguns sustentam - que não convinha legislar “em cima” da pandemia -, creio que esta experiência pandémica permitiu evidenciar os principais défices da regulação anterior, de um tempo em que o teletrabalho era quase ficção científica.

Desde o início da pandemia, tudo ou quase tudo mudou, surgindo o teletrabalho domiciliário como forma privilegiada de manutenção da atividade laboral e empresarial em tempos de distanciamento físico e de confinamento. O teletrabalho, regulado no Código do Trabalho desde 2003, como uma modalidade contratual atípica, marginal, desviante, passou a ser imposto por lei em todas as atividades e funções compatíveis com o mesmo, como estratégia de combate à difusão do vírus da covid-19. Neste mundo viral, desenhou-se um novo paradigma, com o teletrabalho a converter-se em forma “normal” de prestação de trabalho. E estou convicto de que a experiência destes quase dois anos de pandemia vai deixar marcas, nada voltará a ser como era, o teletrabalho chegou em força e vai ficar e perdurar.

A experiência destes meses de prática difundida de teletrabalho demonstrou que a lei portuguesa, contendo já princípios muito relevantes nesta matéria, carecia de ser revista e densificada, extraindo as lições da pandemia. Ao invés do que alguns sustentam ─ a saber, que não convinha legislar “em cima” da pandemia, que conviria estudar, medir, refletir, ponderar, analisar, etc, remetendo tudo para daqui a uns bons anos ─, creio que esta experiência pandémica permitiu evidenciar os principais défices da regulação anterior, elaborada num tempo em que o teletrabalho era quase um cenário de ficção científica.

Os problemas mais agudos suscitados pela rica experiência de teletrabalho obrigatório durante a pandemia podem condensar-se em torno dos seguintes tópicos, que constituíam outros tantos desafios para o legislador:

  • clarificar as fontes possíveis do teletrabalho, reiterando que, em princípio, ele carece do mútuo acordo das partes, sem prejuízo de haver casos em que a lei reconheça ao trabalhador um direito a teletrabalhar;
  • densificar e dilucidar os limites dos poderes patronais de controlo e vigilância, em confronto com a tutela da privacidade do teletrabalhador; rever o regime das visitas ao local de trabalho (seja pela entidade empregadora ou seus representantes, seja pela ACT), quando este coincide com o domicílio do teletrabalhador;
  • enfrentar a questão das relações entre o tempo de trabalho e o tempo de vida (afinal, o teletrabalho promove e facilita a conciliação entre a vida profissional e a vida pessoal e familiar, ou, pelo contrário, propicia a confusão entre estas duas partes da vida da pessoa, em especial da mulher, trabalhadora, com efeitos nefastos?), ressurgindo aqui, com particular acuidade, o desafio do “direito à desconexão”;
  • esclarecer o sentido e alcance do princípio da igualdade de tratamento entre teletrabalhadores e trabalhadores presenciais, designadamente em temas como o dos acidentes de trabalho ou do pagamento ou não ao teletrabalhador de determinadas atribuições patrimoniais, tal como o subsídio de refeição;
  • esclarecer, em moldes imperativos, quem paga as despesas inerentes ao teletrabalho, impedindo que esta questão seja remetida para o contrato individual (entre o forte e o fraco, a liberdade oprime…);
  • atenuar o isolamento do teletrabalhador, sabendo-se que o teletrabalho no domicílio reforça a tendência para a individualização da relação de trabalho, enfraquece a malha que liga os trabalhadores entre si e constitui um desafio particularmente delicado para as estruturas de representação coletiva dos trabalhadores.

Parece indiscutível que a pandemia acelerou drasticamente uma tendência que já se vinha a manifestar antes, no âmbito da era digital em que vivemos: a emergência de novas formas de produzir e de trabalhar, o trabalho à distância cada vez mais frequente, um espaço de convivialidade humana, presencial ─ a empresa ─ que se vai empobrecendo e perdendo… O receio é que nos conformemos e nos acomodemos a uma vida desvalorizada, a uma vida ensimesmada, tricotada com o fio da ausência, com medo de si e dos outros. Estará, cada um de nós, a caminho do enclausuramento em si próprio, como questiona Bernard-Henri Lévy?

Não sou assim tão pessimista. Mas o futuro do trabalho humano passará, decerto, pela utilização mais intensa das tecnologias da informação e da comunicação e pelo recurso mais frequente ao trabalho à distância. O virtual e o digital ganharão cada vez mais terreno ao real e ao presencial. Talvez venham a predominar regimes mistos ou híbridos, com alternância entre o trabalho à distância e o trabalho presencial. Em qualquer caso, o Direito do Trabalho tem de ser capaz de se adaptar, de forjar respostas adequadas a estas novas realidades que vão surgindo, fruto da (r)evolução tecnológica. Afinal, sempre assim foi, desde a origem deste ramo do Direito.

Ora, não tenho dúvidas de que foi isto mesmo que o legislador tentou fazer, através da Lei n.º 83/2021, de 6-12. O diploma não é perfeito. Apresenta até, aqui e ali, partes em que não foi suficientemente audacioso e outras em que não prima pela clareza? Sim, com certeza. Mas, convenhamos, o diploma melhora, inequivocamente, o quadro jurídico do teletrabalho no nosso país, reforçando os direitos dos teletrabalhadores, por vezes até ensaiando soluções com alguma originalidade, como sucede em matéria de desconexão.

O regime do teletrabalho foi revisto e, enfatize-se, foi globalmente melhorado (em matérias como a da privacidade do teletrabalhador, de pagamento de despesas, do tempo de autodisponibilidade e descanso, do teletrabalho como direito do trabalhador, etc). Não subscrevo a tese, conservadora, segundo a qual seria preciso estudar e analisar o fenómeno, anos a fio, até rever a legislação que provinha de 2003, ano em que o fenómeno era, aliás, quase inexistente. Isso, creio, seria um péssimo serviço que se prestaria aos (tele)trabalhadores. Pela minha parte, congratulo-me que o Parlamento não tenha aderido a essa narrativa. Não se trata de promover o teletrabalho e de legitimar a precariedade. Podemos, é claro, olhar de soslaio para o teletrabalho, mas isso não legitima que se olhe de soslaio para uma lei que, malgré tout, tenta reforçar o estatuto jurídico daqueles que prestam este tipo de trabalho.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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