Todos os dias são perfeitos para ler J.D. Salinger

Quando descobri os seus contos, fiquei imediatamente impressionada com a habilidade de J. D. Salinger para criar diálogos aparentemente domésticos, mas através dos quais nos surgem personagens plenas de verosimilhança, quase pessoas reais. As suas personagens são, sobretudo, figuras inadaptadas que não conseguem integrar-se na sociedade em que vivem e que não conseguem ter uma noção mínima de quem são.

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Ed Robertson/Unsplash

Há quase doze anos morreu um dos meus autores favoritos — Jerome David Salinger, mais conhecido por J.D. Salinger. A sua vida foi longa e viveu, de certa forma, várias vidas – de aspirante a actor, a soldado, a eremita zen – até morrer aos 91 anos de idade. O romance À Espera no Centeio (o livro que o assassino de John Lennon lia enquanto aguardava à porta do artista para executar o crime) tornou-se uma das suas obras mais célebres. Mas J.D. Salinger é, sobretudo, um grande contista. As suas narrativas curtas têm a capacidade de deixar uma impressão marcante nos leitores. O mais misterioso na sua escrita (o próprio autor foi também um personagem misterioso) é que, através dos seus livros, podemos assistir a várias vidas de forma surpreendentemente verosímil.

Os livros de Salinger correspondem à concretização de muito trabalho, é certo, mas também a um enorme talento. Hemingway considerava-o um escritor de talento infinito (mesmo antes de este ter escrito o seu único romance) apenas através dos contos que foram publicados durante anos pela The New Yorker, publicação que lhe garantiu a subsistência durante muito tempo. A sua obra é curta; além de À Espera no Centeio (1951), Salinger publicou apenas mais três livros: Nove Contos (1953), Franny e Zooey (1961) e Levantai Alto o Pau de Fileira, Carpinteiros e Seymour: Uma Introdução (1963). Contudo, nenhuma destas obras alcançou o êxito de À Espera no Centeio. Venderam-se mais de 60 milhões de exemplares deste livro e ainda se vendem, anualmente, 250 mil unidades.

J.D. Salinger foi um autor que nunca quis aparecer e que valorizava a sua privacidade acima de tudo. Decidiu sair de Nova Iorque em 1951, ano da publicação do seu bestseller. Fugiu da imagem da celebridade em que pareciam querer torná-lo. Fugiu para a vida no campo e por lá ficou até ao fim. Quando descobri os seus contos, fiquei imediatamente impressionada com a habilidade do autor norte-americano para criar diálogos aparentemente domésticos, mas através dos quais nos surgem personagens plenas de verosimilhança, quase pessoas reais. As suas personagens são, sobretudo, figuras inadaptadas que não conseguem integrar-se na sociedade em que vivem e que não conseguem ter uma noção mínima de quem são.

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Salinger na capa da revista "Time" em 1961 AFP

Um dos contos que mais me marcou foi Um dia perfeito para o peixe-banana, publicado pela primeira vez em 1948, na revista The New Yorker. Neste conto, Salinger retrata os efeitos colaterais da Segunda Guerra Mundial: a melancolia, os transtornos mentais e a pré-disposição para o suicídio (sabemos que o próprio autor passou por um período traumático no pós-guerra). “Bem, nadam para dentro de um buraco onde há uma data de bananas. São uns peixes normalíssimos, quando entram. Mas mal se vêem lá dentro, portam-se como porcos. Sabes lá, já vi peixes-bananas entrar num buraco de bananas e comer nada menos do que setenta e oito bananas.”

O protagonista deste conto chama-se Seymour Glass (see more glass). Glass tanto pode ser traduzido em português pela palavra vidro ou pela palavra espelho (ver mais espelho, ver com/através do espelho, ver-se sempre como estando diante de um espelho). Este conto exprime uma das problemáticas mais recorrentes e perturbadoras na obra de Salinger — tentar viver encarando-se a si próprio, reconhecer a própria identidade, por mais bizarra que ao próprio possa parecer. Ver e encarar essa espécie de narciso distorcido pelas águas dos acontecimentos.

O que Salinger parece dizer é que, como os peixes-bananas, estamos muitas vezes entregues à condição não-natural de comer bananas. Que a nossa vida se encontra condenada à partida, que no fim da linha estará sempre a morte. Talvez tenha sido esta lucidez que lhe deu a capacidade de viver longe da vaidade da civilização. Longe de comportamentos e de um estilo de vida pseudo-imortal, que muitos assumem na forma como vivem. Todos os dias são perfeitos para se ler os seus livros. Salinger será sempre um autor a ler (ou a reler).

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