Morreu J.D. Salinger, o eremita das letras

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J.D. Salinger

O criador de Holden Caulfield, o adolescente mais famoso da literatura norte-americana desde Huckleberry Finn, não publicava desde 1965, apesar de continuar a escrever para si próprio

Holden Caulfield, a personagem mais carismática criada pelo escritor norte-americano J.D. Salinger, que morreu na quarta-feira aos 91 anos, queria que, quando morresse, alguém tivesse bom senso suficiente para o lançar num rio ou coisa parecida. Podiam fazer-lhe tudo, menos colocá-lo num maldito cemitério, onde as pessoas vão aos domingos depositar ramos de flores no estômago dos mortos e toda essa treta. "Quem quer flores quando está morto? Ninguém", dizia o adolescente.

Ontem, ao final da tarde, Phyllis Westberg, o agente literário do autor de Uma Agulha no Palheiro, divulgou em comunicado que o escritor morreu de causas naturais em sua casa em Cornish, New Hampshire, nos Estados Unidos. No documento, a família explica que em coerência com o desejo mostrado por Salinger ao longo de toda a vida, de proteger e defender a sua privacidade, não haverá serviço fúnebre. Pedem respeito pelo escritor e pelo seu trabalho e que a privacidade também se estenda à família, individual e colectivamente, durante este momento de luto.

A passagem do famoso romance The Catcher in the Rye publicado em 1951 (Uma Agulha no Palheiro ou na mais recente tradução portuguesa À Espera do Centeio) citada em cima foi lembrada por Gregory Cowles, ontem, no blogue Paper Cuts, do New York Times. Ele escrevia: "Sentimos tanto a falta de J.D. Salinger durante tanto tempo que podemos agora lançar-lhe um adeus e desejar que descanse em paz."

Autor fetiche do pós-guerra

Acabaram-se assim as mistificações à volta de J. D. Salinger, um escritor com uma história particular e a quem o New York Times chamou "a Garbo das Letras", "famoso por não querer ser famoso". Alguém, com uma obra composta por um romance (que era lido como um rito de passagem) e três novelas e livros de contos ( o último publicado em 1965), que foi capaz de tomar a decisão de desaparecer para sempre dos olhares do resto do mundo no auge da fama. Sabia-se que estava vivo mas pouco mais.

Até que no ano passado, aos 90 anos, o escritor conseguiu que um juiz federal impedisse, por tempo indeterminado, a publicação nos EUA do livro 60 Years Later: Coming Through The Rye, uma sequela não autorizada escrita pelo sueco Frederick Colting do seu clássico.

Os vizinhos em Cornish raramente o viam, afirma a Reuters, e Salinger nunca respondia a telefonemas ou a cartas de leitores. Teria sido uma desilusão para a personagem que ele próprio inventou, pois, lembra a agência noticiosa, Holden Caulfield dizia que o que realmente mexia com ele era um livro que, quando se acaba de ler, nos faz desejar que o autor que o escreveu seja nosso amigo e lhe possamos telefonar quando nos apetecer.

O autor fetiche da geração do pós-guerra, Jerome David Salinger, nasceu em Manhattan, em Nova Iorque, em 1919. Era filho de Sol Salinger, um importador de queijo, e de Marie Jillich. Começou a escrever aos 15 anos, quando entrou no colégio militar da Pensilvânia. Aí descobriu Hemingway e Fitzgerald e o seu pai, que tinha enviado o filho para a Europa onde faria um estágio para se aperfeiçoar na carreira da indústria alimentar, rendeu-se à evidência: ele nunca lhe iria suceder no negócio de família.

De regresso aos EUA, em 1940, publica a sua primeira história numa revista: The Young Ones, na Story. Em 1942, é chamado para a Segunda Guerra Mundial. Participa no desembarque na Normandia e na libertação de Paris, onde conhece aquela que viria a ser a sua primeira mulher, Sylvia.

Começa a publicar contos na revista New Yorker em 1946, o primeiro com a personagem Holden Caulfield, que aparecerá depois em Uma Agulha no Palheiro, em 1951. Foi com as aventuras do adolescente de 16 anos que ficou famoso. Por causa das críticas a Franny e Zooey, de 1961, torna-se um eremita. Numa rara entrevista ao New York Times, em 1974, disse que encontrou uma "paz maravilhosa" ao deixar de publicar por ser uma invasão terrível da privacidade e revelava: "Gosto de escrever. Mas escrevo só para mim e para meu próprio prazer."

Casou também com Claire Douglas, de quem tem dois filhos. Teve uma ligação com Joyce Maynard, de 18 anos, com quem começou a trocar cartas; e nos anos 80 casou-se com Colleen O"Neill, uma enfermeira 40 anos mais nova do que ele.

Nunca vendeu os direitos da adaptação ao cinema de Uma Agulha no Palheiro e foi este o livro que Mark Chapman - o homem que assassinou John Lennon - pediu ao ex-Beatle para autografar na manhã em que o matou.

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