Abdelaziz Bouteflika, morreu um herói africano

Nem mesmo os últimos anos conturbados da carreira política do ex-Presidente argelino ensombram, na morte, uma das grandes referências das lutas de libertação em África.

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Zohra Bensemra/Reuters

O ex-Presidente da Argélia Abdelaziz Bouteflika morreu esta sexta-feira aos 84 anos, depois de anos com problemas de saúde devido a um acidente vascular cerebral (AVC) em 2013 e que limitou a sua vida pública no fim do seu período no poder e que forçou mesmo a sua demissão em 2019.

A confirmação da morte do histórico dirigente, que esteve quase duas décadas no poder foi feita pela Presidência através de um breve comunicado lido na televisão pública ENTV.

Pressionado para deixar o poder em 2019 quando perdeu os apoios que tinha na Frente de Libertação Nacional e no Exército, no meio de muitas manifestações na rua contra a sua candidatura a um quinto mandato.

O anúncio de que pretendia continuar no poder, mesmo depois de em 2014 se ter visto impossibilitado de fazer campanha por causa do seu estado de saúde – em que, mesmo assim, ganhou com 81% dos votos – acabou por desatar uma onda de contestação contra o velho herói da luta de libertação e o seu círculo mais próximo.

Confinado a uma cadeira de rodas e com muito pouca participação em actos públicos – e, nesses, sem fazer declarações –, Bouteflika passou a falar com os argelinos através de mensagens escritas, o que levou os seus críticos a definirem esse período político como o da “Presidência epistolar”.

Quando, mesmo com todas essas condicionantes e com o país mais ou menos estagnado, política e economicamente, o velho Presidente (ou o seu círculo) decidiu avançar para um quinto mandato à frente dos destinos do país, a gota de água vez romper o dique e a indignação fez efervescer as ruas.

Nunca se tinham visto manifestações tão multitudinárias na Argélia do pós-independência e tudo com o único propósito de pedir o afastamento de Bouteflika e, sobretudo, do seu círculo político, empresarial e militar mais próximo, suspeitos de estarem a instrumentalizar o debilitado político para continuarem a tomar decisões em seu nome. Um poder na sombra a quem os argelinos chamavam, simplesmente, ‘Le Pouvoir’, o poder com artigo definido.

A 26 de Março de 2019, o então chefe do Estado Maior General das Forças Armadas, o general Ahmed Gaid Salah – que curiosamente acabaria por morrer a 23 de Dezembro desse ano, com um ataque cardíaco, depois de passar ess – pediu a Bouteflika que apresentasse a sua demissão por razões médicas.

O velho Presidente ainda tentou uma última manobra política, propondo adiar as eleições e realizar uma conferência nacional para discutir a situação no país, mas já não lhe restavam trunfos para forçar a aceitação dos seus desejos e mesmo garantindo que não se recandidataria a novo mandato, já ninguém lhe fez caso.

Com a imagem política pelas ruas da amargura, anunciou a 1 de Abril que se demitiria no dia 28, mas 24 horas depois já se tinha demitido. Dilapidado o seu capital político, ninguém mais teve poder para o manter 27 dias mais no palácio presidencial.

Desde então, Bouteflika manteve-se longe dos olhos do público, afastado da política e, sobretudo, sem ser atingido pelas dezenas de processos judiciais de corrupção contra pessoas do seu círculo próximo e antigos altos membros do Governo, entre eles, o seu irmão, Said Bouteflika, seu confidente e quem tomava realmente as decisões depois do AVC, condenado depois a 15 anos de prisão.

A Argélia, no entanto, não recuperou o rumo e a crise política, embora mais suavizada, continua ainda hoje, dois anos depois. Os manifestantes não abandonaram as ruas, mesmo com o aumento da repressão por parte da polícia, e pedem agora a reforma do sistema político que se mantém desde a independência do país da França em 1962.

Porque se Bouteflika se foi do poder, Le Pouvoir continua a mexer os cordelinhos nos bastidores.

Herói da resistência

Abdelaziz Bouteflika nasceu em 1937 ou em Tlemcen, no Oeste da Argélia, ou Uchda, em Marrocos – os seus biógrafos nunca se puseram de acordo. No que coincidem os biógrafos é na entrada na resistência contra o poder colonial francês antes de completar 20 anos.

Delfim de Houari Boumédiène, que se tornaria depois da morte de Ben Bella no segundo Presidente da Argélia independente, foi primeiro ministro da Juventude e Turismo, quando tinha apenas 25 anos, e um ano depois ministro dos Negócios Estrangeiros, cargo que exerceria até 1979.

Durante o tempo em que chefiou a diplomacia argelina teve um papel importante no Movimento dos Países Não Alinhados, defendendo a aceitação da República Popular da china nas Nações Unidas e condenando o apartheid na África do Sul.

Também foi um dos grandes apoiantes de Yasser Arafat no conflito israelo-palestiniano, a ponto de o convidar para participar na Assembleia Geral das Nações Unidas quando assumiu a sua presidência em 1974, naquele que foi um momento histórico para a causa palestiniana e o princípio do caminho para conseguirem o reconhecimento que hoje têm como membro permanente da ONU – a independência do Estado da Palestina foi declarada em Argel em 1988.

A morte de Boumédiène em 1978 trouxe a abertura de uma investigação contra ele por suspeitas de corrupção, facto que o levou a exilar-se no princípio da década de 1980, só voltando ao país sete anos depois, numa altura em que os islamistas ganhavam força na política argelina, culminando na vitória da Frente Islâmica de Salvação (FIS) nas eleições de 1991.

Mas o Governo, com o apoio do exército, anulou as eleições, provocando uma guerra civil que durou mais de dez anos e fez mais de 150 mil mortos.

A paz veio já quando Bouteflika havia refeito a sua carreira política e sido eleito Presidente em 1999 exactamente com o compromisso de acabar com a guerra, numa eleição com resultados duvidosos, depois dos outros candidatos se terem retirado da corrida por temerem uma fraude orquestrada pelo exército.

Depois da guerra

O Presidente argelino cumpriu a sua promessa e conseguiu a paz, depois da amnistia para todos os guerrilheiros que entregassem as armas e não estivessem envolvidos em assassínios ou violações, aprovada em referendo, ter ajudado a fazer decrescer os níveis de violência. A 8 de Fevereiro de 2002 acabava oficialmente a guerra, depois de o Grupo Islâmico Armado ter sido praticamente erradicado.

Praticamente porque um pequeno grupo dissidente transformou-se no Grupo Salafista para a Pregação e o Combate, jurando depois lealdade à Al-Qaeda e transformando-se na Organização da Al-Qaeda no Magrebe Islâmico, que ainda continua activo e estendeu a sua influência para lá das fronteiras da Argélia.

Com Bouteflika, o país norte-africano estabilizou, sobretudo devido à recuperação económica alimentada pelos rendimentos do petróleo e do gás natural, que, tal como em outros países produtores de petróleo, são cura e doença ao mesmo tempo, pois tornou a economia dependente desses sectores e desincentivando as iniciativas para diversificar a economia.

E se o velho herói da independência trouxe a estabilidade, rapidamente esta se converteu em imobilismo, devido a que Bouteflika se rodeou sobretudo por velhos camaradas das lutas independentistas e por empresários que fizeram muito dinheiro com os negócios do pós-guerra civil.

Daí até aos protestos pela falta de perspectivas da população foi um passo que a Primavera Árabe veio acelerar e as mudanças cosméticas levadas a cabo pelo Governo de Bouteflika foram incapazes de travar.

A última peça que fez desmoronar o seu poder foi o anúncio de que pretendia seguir na presidência, candidatando-se a um quinto mandato - ele que já promovera uma revisão constitucional para poder superar a cláusula do limite de mandatos consecutivos – numa altura em que já ninguém o via e se especulava que os mais próximos tomavam as decisões por ele.

Mesmo manchados os seus últimos anos de carreira política por essa febre de poder de que foram acometidos outros lutadores pela liberdade antes dele, a morte de Abdelaziz Bouteflika deixa o continente africano órfão de uma das principais figuras do processo de descolonização de África.

“Meca dos revolucionários”

Em 2005, por ocasião de uma visita de Bouteflika a Portugal, Mário Soares lembrava como a Argélia se tinha tornado depois da independência num centro onde “se cruzaram todos os exilados do mundo”, incluindo os combatentes antifascistas portugueses que se tinham visto obrigados a fugir de Portugal para continuarem a sua luta contra a ditadura e os líderes nacionalistas das colónias portuguesas que lutavam pela autodeterminação.

Mário Soares explicava que nunca tinha ido a Argel antes do 25 de Abril, a “meca dos revolucionários de todo o mundo”, frase cunhada por Amílcar Cabral, apesar dos muitos convites, por ser o advogado da família de Humberto Delgado na investigação do seu assassínio. Só lá foi depois da Revolução, com Almeida Santos, para assinar o tratado da independência da Guiné-Bissau, a primeira concedida às colónias portuguesas.

“Recordei com Bouteflika o momento em que nos conhecemos”, escreve Soares. “Ele lembrava-se bem. Em Nova Iorque, na sede das Nações Unidas, era ele então Presidente da Assembleia Geral e eu, acabado de ser nomeado Ministro dos Negócios Estrangeiros, fui àquele areópago falar, em nome do Portugal livre, para afirmar a vontade do novo Governo - do Presidente português ao tempo, general Costa Gomes e do seu Governo - de cumprir as resoluções das Nações Unidas e iniciar a descolonização.”

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