Bouteflika tem as mãos livres

O Presidente Bouteflika queria luz verde para governar e os argelinos deram-lha. Numa adesão histórica, quase 99 por cento dos eleitores confiaram na "concórdia civil", uma lei para restabelecer a paz, levada a referendar pelo chefe de Estado.

Os argelinos deram carta branca ao Presidente Abdelaziz Bouteflika. Não só votaram "sim" no referendo de quinta-feira sobre o seu projecto de paz, como acorreram em massa às urnas. A lei da "concórdia civil" foi aprovada por 98,6 por cento dos eleitores, dando a Bouteflika luz verde para seguir com a sua política contra o terrorismo, a corrupção e a crise económica.Agora, e até 13 de Janeiro do próximo ano, os islamistas armados "sem sangue nas mãos" - como ressalva o Presidente - podem entregar-se às autoridades para serem total ou parcialmente amnistiados. O objectivo é uma reintegração na sociedade argelina. Depois da data marcada, o Estado será "impiedoso" com os refractários.Foi esta a solução encontrada por Bouteflika para tentar acabar com a revolta integrista que nos últimos sete anos provocou mais de 100 mil mortos e 3 mil milhões de dólares em danos materiais. É preciso virar a página da violência e trabalhar para uma Argélia "poderosa no interior e respeitada no exterior", defendeu incessantemente ao longo da campanha."Basta de sangue, basta de órfãos, basta de viúvas, basta de violações", gritou uma adolescente de Argel durante o último encontro pré-eleitoral do Presidente. A sala aplaudiu. Até agora, 300 homens já se entregaram às autoridades, segundo o chefe do Governo, Smaïl Hamdani. Outros 30 mil estariam em condições de fazer o mesmo.Durante uma campanha enérgica a favor da "concórdia civil", Bouteflika deixou claro que o que estava em causa não era a lei em si mesma - já que esta já tinha sido votada no parlamento, promulgada e aplicada desde 13 de Julho - mas o apoio popular que receberia. "O chefe de Estado fez do referendo o acto fundador de uma nova era", lê-se na edição de ontem do "Le Monde". O Presidente colocou mesmo o lugar à disposição caso não conseguisse o apoio de 51 por cento dos argelinos. Mas consegui-o. Mais: obteve a maior participação eleitoral de sempre, com 85 por cento de afluência às urnas, segundo a AFP (74 por cento segundo a Reuters)."O resultado já era esperado porque a busca da paz é uma aspiração profunda do povo argelino", comentou à Reuters Abdelaziz Belkhadem, antigo deputado e amigo do Presidente.A partir daqui, o chefe de Estado conta com uma legitimidade que até agora não tinha para impor a sua política. É que, nas eleições de Abril, Bouteflika acabou a concorrer sozinho, uma vez que os outros seis candidatos desistiram à última da hora, alegando fraude eleitoral. A forma como venceu esse escrutínio serviu de arma de arremesso à oposição cada vez que era preciso questionar as suas decisões."O referendo vai dar ao Presidente todos os poderes que ele precisa para tomar medidas que consolidem o seu plano de resolução da crise", declarou ainda Belkhadem. E por crise entende-se ainda uma taxa de desemprego de 30 por cento, um grave marasmo económico e um alto nível de corrupção nas instituições estatais.Do lado do "sim" estiveram juntos partidos laicos, como a União para a Cultura e Democracia (RCD), e islamistas "moderados" do MSP de Mahfoud Nahnah, que faz parte do Governo. Do outro, apesar de não ter sido dada indicação clara de voto, estiveram a Frente da Forças Socialistas (FFS), de Aït Ahmed, alguns trotsquistas, adeptos islâmicos de Taleb Ibrahimi, uma facção de antigos membros da Frente Islâmica de Salvação (FIS), e várias personalidades independentes. São os chamados "reconciliadores", que desde há anos defendem uma solução política com os islamistas para acabar com a violência.Na Kabília, bastião berbere com ambições autonomistas, onde a oposição anti-islamista tem forte implantação, os eleitores votaram "pela paz" e "pela misericórdia", com uma participação de 40 por cento, ou seja, metade da média nacional - em Abril apenas 6 por cento dos eleitores foram às urnas. A FIS, o maior grupo islâmico da Argélia, acolheu os resultados do referendo com precaução afirmando estar à espera da reacção do Exército, que tem limitado o poder aos anteriores presidentes. "O Exército vai apoiar a opção escolhida pela maioria no sentido de se fazer qualquer esforço para acabar com o banho de sangue e sarar as feridas de uma forma não descriminatória e digna?", interroga Abdelkader Hachani, o número 3 da FIS, interrogado pela Reuters.Numa entrevista ao "Le Monde", Hachani defende ainda que a consulta deveria ter resultado de "um diálogo entre os partidos e não de uma iniciativa pessoal inquietante. Inquietante porque receamos cada vez mais a vitória de uma opção repressiva. Uma lei feita para a paz não pode ser limitada no tempo".

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