Nós e a emigração
A ideia de que a migração dos anos sessenta tem alguma relação com a guerra colonial ou com a falta de liberdade, como se ensina aos meninos na escola, é simplesmente absurda.
Nuno Palma, que estuda a história económica de Portugal no longo prazo – a sua principal área de interesse anda ali pelo século XVIII para tentar perceber as razões que transformam Portugal de um dos países com maior PIB per capita do mundo num dos mais pobres da Europa, em relativamente poucos anos –, foi a uma convenção política fazer uma intervenção política que, entre outras, tinha uma ideia política relativamente simples: enquanto os instalados do regime insistirem na tese de que todos os problemas de desenvolvimento do país têm raiz no Estado Novo, será sempre difícil discutir seriamente por que razão estamos estagnados há vinte anos.
Esta ideia política foi, naturalmente, contestada politicamente pelos instalados do regime, quer de forma mais tosca, tentando negar evidências sobre o desenvolvimento económico e social de Portugal entre a abertura económica associada à adesão à EFTA (1960) e o primeiro choque petrolífero em 1973, quer de forma mais sofisticada por um conjunto de intelectuais que, não negando os factos essenciais do enorme desenvolvimento económico e social de Portugal nesse período – o maior período de convergência do país com os países desenvolvidos nos últimos 200 anos –, procuraram argumentar com questões laterais ao que tinha sido dito, como forma de minar a credibilidade académica de Nuno Palma.
Sem surpresa, um dos mitos mais persistentes sobre o Estado Novo acabou por aparecer aqui e ali na polémica que se instalou: a ligação entre o enorme movimento migratório dos anos sessenta e a natureza do regime.
Não sou investigador, nem de história, nem de economia, nem de sociologia, nem mesmo de arquitectura paisagista, área em que, por gosto pessoal, sem grande interesse para a minha carreira profissional e à minha custa (e de alguns amigos), fiz um doutoramento sobre a evolução da paisagem rural ao longo do século XX.
A emigração é um assunto incontornável quando se estuda a evolução da paisagem rural portuguesa ao longo do século XX, quer para compreender as razões que a motivam – no fim do século XIX e princípios do século XX, depois a partir de meados dos anos 50 até meados de 1974 e a sua retoma no fim do século XX –, quer para compreender como a miséria prevalecente não gerou movimentos migratórios relevantes entre o fim dos anos 20 e meados dos anos 50, quer, do ponto de vista inverso, para compreender como esses movimentos, ou a sua ausência, influenciam a evolução da paisagem.
Como a tese que fiz tem uma estrutura muito simples – tomando os concelhos como unidade geográfica, avalio de que forma os dados estatísticos da população e das produções agrícolas e pecuárias evoluem, inferindo a evolução da paisagem que está a ocorrer a partir daí –, é bastante fácil ver nos mapas a evolução da população por concelho a cada dez anos, relacionando-a com o contexto económico e social em que está a ocorrer.
A ideia de que a migração dos anos sessenta tem alguma relação com a guerra colonial ou com a falta de liberdade, como se ensina aos meninos na escola, é simplesmente absurda.
Com certeza há pessoas que emigram por causa da guerra, com certeza há pessoas que emigram por razões políticas, mas não têm qualquer expressão relevante no grande movimento migratório dos anos sessenta, que tem as características clássicas dos grandes movimentos migratórios: a diferença de rendimento que se consegue obter no ponto de partida é muito mais baixa que os rendimentos que potencialmente podem ser obtidos no ponto de chegada.
Poder-se-ia argumentar que são exactamente as más condições económicas do ponto de partida que são responsabilidade do regime, só que esse argumento, podendo ser parcialmente verdadeiro (pessoalmente estou convencido que uma democracia sólida teria obtido melhores resultados económicos e sociais no longo prazo, mas a história não admite contraprova, portanto não tenho maneira de testar esta minha convicção), tem um alcance muito limitado para se compreender o que se passou.
Portugal era nessa altura um país pobre, mas já antes era muito pobre, com o mesmo regime político, e a emigração era historicamente baixa entre o fim dos anos 20 e meados dos anos cinquenta.
Nessa altura, depois da crise económica do fim dos anos 20, que fechou a América (incluindo Brasil) como destino preferencial de emigração – dos treze filhos da minha avó paterna, alguns morreram muito novos, duas a três raparigas ficaram na aldeia de origem ou próxima, e todos os outros emigraram para o Brasil, com excepção do mais velho que teve possibilidade de aceder a uma carreira militar e depois ao funcionalismo público colonial, e o meu pai que, por ter nascido em 1915 e ter ainda frequentado o seminário, só estaria em condições de emigrar quando no Brasil as oportunidades já escasseavam, tendo optado por ir para África –, não havia destino de emigração disponível por causa da crise económica e da guerra.
Note-se que apesar do intenso movimento migratório para o Brasil (e outras partes da América) nas duas primeiras décadas do século XX, a população do país, incluindo o país rural, crescia a olhos vistos: nenhum concelho do Alentejo teve aumentos populacionais menores que do simples para o dobro, tendo mesmo alguns triplicado a população nessas duas décadas, provavelmente com alguma relação com a política de protecção da produção de cereais criada pela “Lei da Fome” de Elvino de Brito (fica para outra altura a desmontagem dos mitos associados à campanha do trigo do Estado Novo, começando pelo facto de uma das mais sólidas contestações à produção de cereais em Portugal que conheço ser a tese com que Salazar entrou na Universidade de Coimbra, em 1916).
Da mesma forma, apesar de nos anos sessenta qualquer coisa como um milhão e meio de portugueses terem emigrado, a população total do país apenas diminuiu cerca de 300 mil pessoas entre 1960 e 1970, pondo em causa a ideia de que a emigração resulta de uma crise económica como a grande fome da Irlanda, por exemplo.
A emigração parece-me um mecanismo social e económico de reequilíbrio, mudando pessoas de sítios onde o seu trabalho tem baixo valor para sítios onde tem um valor maior.
Ao olhar para as variações de população por concelho, na tal tese que referi acima, pareceu-me ver um início de despovoamento da região mais pobre do país (os xistos centrais), ainda nos anos 40, que interpreto como o resultado do agravamento da fome endémica a que se junta a mecanização da ceifa no Alentejo e Ribatejo (que diminui o rendimento dos ratinhos que iam para a ceifa, grande parte deles originários dos xistos centrais) e, por outro, com o aumento relevante da urbanização e industrialização, incluindo o crescimento do Estado que cria novas oportunidades.
Grande parte destas pessoas vão trabalhar para Lisboa, quer para os pequenos negócios que não exigem investimento – engraxadores, mudanças, alguma construção civil –, quer para os emergentes trabalhos relacionados com obras públicas e particulares e, no caso das mulheres, para criadas de servir, quer ainda para o pequeno funcionalismo público – contínuos, motoristas e afins – que não exige qualificações.
Qualquer que fosse o regime político existente naquelas condições socioeconómicas, as alterações estruturais do mundo rural, com especial destaque para a generalização dos adubos de síntese e a mecanização (por esta ordem), implicariam sempre uma enorme libertação de mão-de-obra não qualificada.
Nessa altura, essa mão-de-obra deu origem a dois fluxos migratórios paralelos, um interno, para as cidades e as indústrias em expansão, outro migratório para fora do país, porque a envolvente europeia do pós-guerra era especialmente deficitária em trabalhadores não qualificados.
A ausência de destino migratório, como aconteceu do fim dos anos vinte a meados dos anos cinquenta, teria agravado os problemas sociais e económicos do país, criando uma situação muito mais desfavorável quer para os que ficaram, quer para os que partiram.
Independentemente dos regimes e qualificações profissionais – populações do Leste da Europa, apesar de muito qualificadas, emigraram em massa mal puderam –, a emigração acontece sempre que a diferença de rendimento potencial justifica os riscos da mudança.
Nuno Palma disse coisas que são praticamente consensuais sobre o Estado Novo, não havendo grande controvérsia académica sobre o que disse.
A persistência deste tipo de mitos na sociedade, como por exemplo a apresentação de Marquês de Pombal como um grande renovador e impulsionador do ensino quando, na realidade, diminui a população escolar em 90%, reflectem mais a pobreza da historiografia nacional que outra coisa qualquer.
Não há grande controvérsia sobre o carácter ilegítimo do regime: uma ditadura é sempre ilegítima, quaisquer que sejam os seus resultados económicos e sociais, porque a fonte do poder e os métodos de tomada e conservação do poder assentam na força e são ilegítimos.
O problema com o que disse Nuno Palma é político, ao questionar um mito fundador do regime que nos permite não pensar na nossa responsabilidade nos fracos resultados económicos e sociais dos últimos vinte anos: atribuindo a raiz de todos os problemas ao Estado Novo, não precisamos de discutir seriamente que opções temos feito nós, como sociedade, que resultam na estagnação que permanece.
Aparentemente ainda estamos no ponto em que Mário Soares estava quando resolveu fazer comparações entre a situação no tempo da troika e a situação no Estado Novo, nestes termos:
“(…) este Governo. Não tem qualquer sensibilidade para com os pobres nem para com a miséria. Mesmo quando alguns não sabem como alimentar os filhos e saem do País. (…) A desigualdade entre os portugueses é cada vez maior, escandalosamente maior. Mesmo no tempo de Salazar, porque Salazar não roubava, embora deixasse alguns fazê-lo. (…) É certo que as crianças na província andavam de pé descalço, mas não tinham fome [Mário Soares, 28 de Janeiro de 2014].”
Continuamos a preferir mistificações que sirvam os nossos objectivos políticos à compreensão da realidade que nos permita mudar de vida.
A verdade é que grande parte das nossas elites não quer mesmo mudar de vida, repetindo incessantemente que, se alguma coisa não corre bem, a culpa ou é do Passos ou é de Salazar.