A soma

Vivendo com as dores somadas, as minhas e as dos outros, apercebo-me com maior espanto do que me rodeia e sinto que despertamos para a beleza das coisas já tarde.

Foto
"Quando fechamos os olhos, permanece a beleza sobre tudo" Mag Rodrigues

Lembro-me daquela vez em que a minha filha muito pequena (será sempre aos meus olhos, não é?) me perguntou: “lembras-te mais das coisas negativas ou positivas?”. Eu hesitei e logo na hesitação encontrei um compasso que não me agradou. O cérebro processou em pouco tempo demasiados momentos e eu queria responder-lhe com clareza que eram as coisas boas que me saltavam aos olhos mas hesitei. E a hesitação tornou a resposta evidente. Aliás, ela percebeu. Respondeu-me antes de eu verbalizar. Leu os meus olhos. Atenção que os nossos filhos cedo aprendem a ler os nossos olhos. Não subestimem tudo aquilo de que eles foram feitos quando foram feitos dentro de nós e respiraram da mesma matéria. Os filhos lêem-nos e não vale a pena andar a enganá-los.

As coisas negativas deixam uma marca funda que se assemelha a uma cicatriz que não se vê. Talvez com os anos fique inscrito no olhar, um olhar cansado da vida mesmo que a vida se encarregue de nos brindar com a beleza do que todos os dias acontece. Até involuntariamente. Sobretudo involuntariamente.

Hoje em dia, vivendo com as dores somadas, as minhas e as dos outros, apercebo-me com maior espanto do que me rodeia e sinto que despertamos para a beleza das coisas já tarde. Contar à minha filha daquele dia em que fui com o meu irmão ver a reserva dos pássaros e havia no canavial um som que rompia o silêncio e os pássaros levantavam voo de forma mansa, isso, talvez nada lhe diga a ela, mas agora diz-me muito a mim. Ou a outra tarde quente em que fomos atrás dos grilos num monte que parece que só existiu naquele dia, na minha cabeça, para sempre na minha vida, também não terá peso na balança do que somamos e do que pode ganhar às coisas menos boas.

Nessa tarde, em que fomos apanhar grilos para depois de forma egoísta os aprisionarmos e termos o canto deles a marcar a estação, eu escrevi uma composição que só existe hoje na minha cabeça: os rapazes num monte que eu nem saberia localizar – como se fosse inventado para aquela tarde para eu o ter na memória das coisas boas, os rapazes faziam chichi na covinha onde os grilos se alojavam, e já depois com eles em fuga eram caçados e trazidos para casa como troféus. Eu sei que o ritual, analisado à lupa, traria discussão acesa sobre a nossa alegada crueldade. Desculpem mas não vamos descascar a nossa infância e fazer dela um lugar híbrido, neutro, calculado. A vida no campo fez de mim a pessoa que sou. Eu já não quero grilos a cantar fechados numa gaiola mas a memória está inscrita em mim e não me traz tristeza, não, não. Está no lugar das coisas bonitas. Quando corríamos pelos campos à procura de ervas para os coelhos e vínhamos felizes de saco cheio de risos e uma ideia ingénua de missão cumprida.

Era a vida feita de coisas tão banais que teria dificuldade em explicar à minha filha que essas foram as coisas que fizeram de mim mais feliz. Quando pudemos ser felizes.

Na soma das coisas negativas e positivas sou, não por acaso, atirada demasiadas vezes para a natureza. E é com ela que me reconcilio sempre que a vida me aperta. Uma flor que inesperadamente desabrocha, um melro em acrobacia privada no quintal. Assistir à dança inesperada das coisas que nascem todos os dias sem que nenhum humano tenha mão nisso.

Dou-me conta de como é fascinante poder assistir a tudo isso. O silêncio de certas manhãs, o sol que irrompe e quase faz doer o olhar. A tarde que se despede mansa na retirada, a noite que traz angústias como se fossem quebra-cabeças por resolver. Sabem aquele filme que muitos viram como pretensioso e eu passo a vida a recordá-lo porque a voz do narrador passou a narrar os meus dias? A Árvore da Vida. “Se não amares, a vida passa num instante”. O filme era um monumento erguido sobre a existência de Deus que eu prefiro ver antes como uma força criadora a que alguns facilmente deram nome. Aprende-se a amar a vida com instantes que nem sequer ficam registados. Só no nosso olhar.

Talvez hoje respondendo à minha filha, a hesitação não fosse tão longa ainda que a resposta fosse a mesma, mas teria de lhe dizer que há demasiadas coisas bonitas em nosso redor para não permitir que o nosso sofrimento leve a melhor.

Quando fechamos os olhos, permanece a beleza sobre tudo. Temos de aprender a amar os instantes.

Sugerir correcção
Comentar