O Melhor Amigo do Cão: um livro que investiga a ligação entre cães e humanos

Os cães acompanham-nos em todas as etapas da nossa vida. Como começou esta relação? E porquê? E como se tem vindo a transformar ao longo dos séculos? Em O Melhor Amigo do Cão, lançado em Portugal pela Bertrand Editora, Simon Garfield responde a estas e muitas outras perguntas. Apresentamos o segundo capítulo: Como começaram os cães.

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Como começaram os cães

A 11 de julho de 2017, a revista Journal of Anthropological Archaeology recebeu um e-mail muito entusiasmado de uma mulher que assinava como doutora Maria Guagnin. A mensagem resumia a sua investigação recente de duas escavações no Noroeste da Arábia Saudita, e as fotografias que a acompanhavam mostravam gravuras em rochas antigas que representavam 147 cenas de caça, incluindo a perseguição e captura de leões, íbex, gazelas e cavalos. Guagnin datava as imagens algures entre 8000 e 6000 a. C. e explicava o quanto tinham revelado acerca da sobrevivência humana nesta parte árida da Península Arábica. Porém também revelavam algo mais: a prova visual mais antiga da domesticação dos cães.

Guagnin, que obteve o seu doutoramento em Edimburgo e trabalhou na School of Archaeology em Oxford antes de se mudar para o Instituto Max Planck para a Ciência da História Humana em Jena, na Alemanha, é especialista na relação pré-histórica entre homens e animais. Três meses depois do seu e-mail, a revista decidiu abreviar o calendário tradicionalmente ponderado associado à publicação académica e disponibilizou o artigo de Guagnin online. A reação, inicialmente cética, tornou-se arrebatada: Melinda Zeder, arqueozoologista no Smithsonian Institute em Washington, DC, considerou o relatório «verdadeiramente assombroso», que não é bem o tipo de expressão que os cientistas costumam utilizar. Algumas das imagens tinham sido reconstituídas por computador, parecendo que os desenhos tinham acabado de ser traçados a giz um dia antes, e mostravam cães a morder o estômago e o pescoço de um íbex. Outros mostravam claramente que muitos cães tinham uma trela. Alguns estavam presos ao pulso de um caçador, o que o deixava livre para usar arco e flecha. Numa gravura, um caçador armado está rodeado por treze cães, todos a olhar na mesma direção, presumivelmente para onde está a sua presa.

A arte rupestre era proveniente das regiões de Shuwaymis e de Jubbah, uma zona há muito fértil em descobertas arqueológicas. Em Shuwaymis, 273 painéis rupestres mostravam 52 cães, ao passo que em Jubbah havia 127 cães em 1131 painéis. Os cães pertenciam todos a uma raça antiga, o cão-de-canaã, com o mesmo nome da região habitada pelos Fenícios em 500 a. C. Guagnin deduziu que este conjunto em particular ou fora levado da região do Levante ou descendia diretamente dos lobos árabes e percebeu que tinham todos características semelhantes: orelhas arrebitadas, focinhos pequenos, caudas enroladas. Muitos deles exibiam também grandes manchas vermelhas no peito, assim como pequenas marcas mais pequenas nas omoplatas, um distintivo clássico da raça, também muito evidente nas gravuras rupestres. De modo mais romântico, o cão-de-canaã era conhecido como o cão pastor beduíno ou como o cão vagabundo e pária de pelo amarelado da Palestina.

As imagens destes cães reescreveram os livros de recordes. Há muito que os antropólogos concordaram que a domesticação dos cães começou há dezenas de milhares de anos, mas esta arte rupestre árabe era agora a prova artística mais antiga.

(Antes, a primeira representação do cão de caça domesticado aparecera em cerâmica recuperada no Irão quase dois mil anos mais tarde, por volta do momento em que os humanos começaram a mudar da difícil sobrevivência a partir da caça para a criação de ovelhas, gado vacum e cabras. A caverna de Chauvet, no Sul de França, apresenta um conjunto de pegadas impressas ao longo de uma extensão de argila de mais de 45 metros que foi amplamente interpretado como mostrando uma criança a caminhar ao lado de um lobo semidomesticado há cerca de 26 000 a 28 000 anos.)

No relatório de Guagnin, submetido em coautoria com dois colegas do Instituto Max Planck, ela especulava sobre a presença significativa da trela: questionava se alguns cães teriam sido escolhidos por serem particularmente bons a farejar, ou se teriam sido protegidos devido a serem muito jovens ou muito velhos. Talvez fossem presos pela trela para proteger os seus donos se a sua presa se voltasse contra eles, ou talvez para ajudarem a puxar a carne de volta para o acampamento. Os cães sem trela talvez fossem especialmente dotados como atacantes, e há várias cenas nas quais os cães parecem ter cercado os seus alvos à beira de penhascos. Deste modo, as gravuras sugerem um desenvolvimento claro na utilização dos cães como indivíduos treinados em vez de matilhas selvagens. Os humanos atribuíram tarefas distintas aos cães, e possivelmente também nomes. Daqui em diante, cães e humanos irão dar-se bem.

A parceria entre humanos e cães tem ocupado antropólogos e arqueozoologistas desde o início das suas disciplinas. Porém, há uma tal incerteza cronológica a turvar a discussão, e as teorias sobre quando é que o lobo deu origem ao cão são tão diversas e intrigantes — quando se transformou o Canis lupus no Canis lupus familiaris —, que o debate continua em aberto. Todos os meses, surge uma nova interpretação dos acontecimentos, cada uma delas mais assertiva e convincente do que a anterior, cada uma delas com a sua linha cronológica, mas nenhuma absolutamente definitiva. Contudo estão a aproximar-se, parece: julga-se que os humanos começaram a domesticar os cães algures entre 15 000 e 40 000 anos atrás.

As primeiras provas visuais nas rochas têm tanto de dramático como de beleza ingénua, como tende a ocorrer com a maioria da arte rupestre, mas não nos dizem quando ou como é que os cães evoluíram a partir dos lobos. E seguramente que também não nos ajudam a determinar se todos os cães — todas as centenas de raças com toda a sua diversidade fisionómica e todas as suas diferentes funções e características — tiveram origem no ADN de um tipo de cão (possivelmente o cão-de-canaã) ou de muitos. Com os cães, como com muitas outras coisas na vida, a arte não nos consegue levar mais longe.

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O autor Simon Garfield dr

Em meados de 2019, uma seleção das últimas teorias e descobertas — o que aconteceu, quando e como — parece o meio de um romance policial insatisfatório, uma espécie de procedimento policial no qual o escritor está prestes a chegar a uma conclusão recompensadora e possivelmente devastadora, mas acaba por deixar o leitor escolher de entre vários fins possíveis. Alguns dos dados são necessariamente contraditórios; é o desejo de desfazer estes conflitos que faz a ciência avançar. Neste ponto, há algo que devemos ter presente e que pode ser por vezes difícil para quem passa muito tempo nos parques a perguntar aos cães «De que raça és tu?» Devemos recordar que a maioria dos cães são combinações de outros.

Kathryn Lord, bolseira de pós-doutoramento a especializar-se na evolução do comportamento canino no Broad Institute, estima que haja entre 700 milhões e 1 milhão de milhões de cães no mundo. Na sua grande maioria, provavelmente mais de 80 por cento, procriando de moto próprio, sem interferência humana, e a maior parte destes a viver perto dos humanos, embora não nas suas casas, a vasculhar lixeiras e caixotes do lixo. (É uma ideia intrigante, apesar de ser sobretudo um trocadilho linguístico, que a maior parte dos cães domésticos continue a viver de modo selvagem.) Em climas quentes, o cão local terá pelagem curta e pesará uns 14 quilos, ao passo que os cães em climas mais frios tendem a ser maiores e a ter uma cobertura mais espessa. Costumam ser amarelo-sujo com uma barriga branca. São muito parecidos com o cão original e vivem num ambiente semelhante ao dos seus ancestrais há milhares de anos.

Todos parecem hoje concordar que os cães nos surgiram a partir do lobo. As provas desta origem foram gradualmente reunidas ao longo do último século — um crescendo de opiniões cada vez mais convincentes provenientes de um vasto conjunto de disciplinas científicas — e foram confirmadas por análises genómicas; postular agora outra teoria seria algo como negar a existência da Lua. Todavia, os cientistas mais notáveis do século xix tinham ideias diferentes. Em 1895, Nathaniel Southgate Shaler, reitor da Lawrence Scientific School em Harvard, escreveu que «alguns estudiosos do problema se inclinam para a opinião de que o cão descende do lobo; supõe-se que crias desta espécie terão sido capturadas pelos homens primitivos e domesticadas». Porém Shaler discordava.

Shaler também não tinha em grande conta a popular teoria vitoriana segundo a qual o cão descendia de uma combinação de lobo, chacal e coiote. Em vez disso, acreditava que os cães descendiam de uma espécie a que chamava cães antigos. Havia numerosos exemplos, afirmava ele de forma vaga, de espécies que desapareciam por completo antes de voltarem a surgir como um tipo diferente e mais avançado, mas as suas provas assentavam totalmente na descoberta de esqueletos de cães com alguns milhares de anos.

E quais teriam sido as razões para a domesticação? A ciência continua a ter dificuldade em demonstrar a motivação. Nathaniel Shaler expressou a ideia comum há 125 anos de que os humanos começaram por receber os cães na sua vida mais pela companhia do que pela utilidade, ao contrário do que defende o pensamento atual. Acreditava que os primeiros cães, que teriam sido atraídos pela comida disponível em volta dos acampamentos humanos, teriam sido eles próprios muitas vezes vítimas da fome e comidos quando outras fontes de alimento escasseavam.

Shaler aproximou-se muito mais da razão num outro assunto, porém. Passando da reflexão sobre o início da domesticação para a posição atual dos cães na sociedade, em 1895 concluiu: «As características mentais dos nossos cães muito domesticados assemelham-se curiosamente às dos seus donos, indo essa semelhança ao ponto de o animal doméstico ser capaz de ter adquirido algo do temperamento geral das pessoas com quem lida.»

Atualmente, a investigação foca-se na localização e no tempo. «Talvez o motivo pelo qual ainda não se tenha chegado a um consenso sobre onde foram os cães domesticados seja por todos estarem, em parte, certos», sugere o professor Greger Larson, diretor do programa de paleogenética na School of Archaeology, em Oxford.

«A maioria dos animais foi domesticada numa única ocasião a partir de uma única população selvagem. O que temos hoje é o que consideramos ser a primeira prova, tanto genética como arqueologicamente, de que, na verdade, os cães foram domesticados em dois momentos.» A utilização, por parte de Larson, da expressão «em dois momentos» sugere uma importância maior do que «duas vezes»; de facto, quando ele e os colegas publicaram o seu trabalho na Science, em 2016, isso suscitou um grande entusiasmo.

A sequenciação de ADN sugeria que havia uma profunda divisão entre a constituição genética dos cães da Ásia Oriental e os da Ásia Ocidental. Esses resultados genéticos foram comparados com os dados arqueológicos, e Larson descobriu que havia «cães muito antigos no Oriente e cães muito antigos no Ocidente, mas só passados 4000 ou 5000 anos depois de os termos visto pela primeira vez em qualquer um dos lados do Velho Mundo é que surgem no meio». A ideia era clara: os cães foram domesticados independentemente e em duas ocasiões separadas a partir de duas populações distintas com milhares de anos de intervalo.

Porém, a história estava longe de acabar aqui, pois havia dados contraditórios que pareciam igualmente convincentes. No final de 2015, apenas alguns meses antes do relatório da equipa de Oxford, investigadores da Universidade de Yunnan, na China, publicaram os seus resultados na revista Cell Research. A partir das sequências do genoma de 12 lobos, 27 cães primitivos da Ásia e da África e um conjunto de 19 raças de todo o mundo, encontraram uma diversidade genética mais elevada nos cães do Sul da Ásia Oriental do que nas outras populações, o que os levou a afirmar que os cães domésticos tiveram origem no Sul da Ásia Oriental há 33 000 anos. Acreditavam que um subconjunto destes cães ancestrais começara a migrar para o Médio Oriente e a África há cerca de 15 000 anos, chegando à Europa uns 5000 anos depois. Também em 2015, a Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States (PNAS) publicou um estudo que apresentava forte evidência de que os cães tinham sido domesticados na Ásia Central, possivelmente nas proximidades do Nepal e da Mongólia atuais.

Outro estudo, publicado em 2017, e baseando as suas conclusões em ossos de cães de duas grutas na Alemanha, mais uma vez pareceu gerar um volte-face no trabalho de Greger Larson e da sua equipa de Oxford. O primeiro osso, de um dos sítios neolíticos mais antigos em Herxheim, no Sudoeste, era datado de há 7000 anos atrás, ao passo que o segundo, do final do Neolítico, continua na gruta de Cherry Tree, nas montanhas da Baviera, e tinha cerca de 4700 anos. O padrão genético extraído destas amostras — que foi cruzado com o ADN do crânio de um cão com 5000 anos encontrado numa tumba em Newgrange, na Irlanda, e quase 6000 amostras de cães moder-nos — sugeriu a Krishna Veeramah, e aos seus colegas na Stony Brook University, em Nova Iorque, que os cães que hoje conhecemos têm todos uma origem comum, emergindo de uma única domesticação de lobos. Além disso, uma análise das mutações caninas ao longo do tempo permitiu que os investigadores identificassem, ao nível genético, uma moldura temporal mais precisa — algures entre 36 000 e 41 500 anos —, provavelmente de um tipo antigo e selvagem há muito extinto.

Não é decerto por acaso que o grupo de extrema-direita alemão Grey Wolves tomou o nome de um animal não domesticado como seu, e aquela imagem do lobo a rosnar, mostrando os dentes, como a sua divisa perturbadora. [«Grey Wolves» significa «lobos». (N. da T.)]

Veeramah concordou com a explicação mais aceite para esta divergência, a de que os cães evoluíram a partir dos lobos que vasculhavam as orlas dos acampamentos humanos quando ainda éramos caçadores-recoletores. Os menos agressivos e mais mansos teriam sido gradualmente bem-recebidos e (ao estilo de Darwin) teriam obtido mais comida. Com o passar do tempo, uma relação mais próxima com os humanos ter-se-ia tornado mutuamente benéfica: o cão-lobo acolhia não só uma fonte fiável de comida, mas também um desejo humano de proteger e alimentar jovens cães-lobos, ao passo que os humanos beneficiavam da proteção dos cães, da sua ajuda no transporte (sob a forma de trenó), no pastoreio e na caça. Desta forma, humanos e cães evoluíram lado a lado. «Nós escolhemo-los, com certeza, mas eles também nos escolheram, e as nossas características comuns podem muito bem ser a causa da nossa aparente intimidade mútua inquebrável», sugere o estudioso de cães Marke Derr.

A psicóloga Alexandra Horowitz encontrou uma conclusão ainda mais clara. Os primeiros cães-lobos «exploraram um nicho ecológico: nós». Os humanos primitivos deixaram de ser nómadas, instalaram-se em espaços permanentes e deitaram coisas fora. Horowitz observa que os humanos criavam lixo mesmo no exterior dos seus acampamentos, e não demorou muito até que os cães mais inteligentes aprendessem um pouco sobre como manipular os humanos. Tem acontecido desde essa altura: damos comida aos cães, os cães sentam-se, rebolam, fazem o que quisermos.

Os últimos vinte anos assistiram a muitas tentativas para posicionar esta interpretação social num enquadramento científico, e a ciência sugere que os cães são tanto um produto da autodomesticação como da engenharia humana. Uma experiência realizada em Harvard, em 2002, revelou que os cães eram muito melhores do que os lobos a interpretar os sinais comunicativos humanos que indicavam a localização de comida escondida. Outras experiências recentes sugerem que cães e humanos partilham contacto visual benéfico desde que os primeiros são cachorros (quando um cão está perante uma tarefa tão difícil que pode olhar para um humano em busca de ajuda), ao passo que, inclusive depois de treino doméstico intensivo, os lobos dificilmente oferecem um olhar que se compare.

Mark Derr identificou outra fase interessante e talvez inevitável nesta relação — um divórcio formal da população de lobos, um ato muito mais premeditado do que aquele que nos liga. Depois de os cães e a agricultura estarem firmemente estabelecidos, «o lobo tornou-se um adversário — um inimigo, mesmo —, não porque nos caçava, mas porque nos tirava o nosso gado», sugere Derr. «Mais recentemente, o movimento de conservação definiu uma nítida divisão entre o natural e o construído, uma divisão que na realidade não devia existir, mas existe. Nesse ponto, o lobo tornou-se uma coisa, e o cão outra, e eles estão em oposição em vez de serem aquilo que são, e que é algo muito próximo.»

Entre as explicações menos científicas, há uma, mitológica, do povo Beng da Costa do Marfim. Pouco depois do início do mundo, todos os animais viviam em harmonia num acampamento. Porém, um dia, o Cão encontrou um ovo raro e valioso entre eles, pegou nele furtivamente e escondeu-o atrás do Portão do Crescente, o local tradicional para os objetos rituais. O ovo eclodiu e deu origem ao homem e à mulher. Pouco depois, o homem fez uma arma e depressa passou a caçar carne. Uma hiena, temendo pela sua vida, urdiu um plano secreto com outros animais: iriam destruir o Portão do Crescente e tudo o que estivesse nele. Porém, o Cão ouviu a Hiena e avisou o homem e a mulher, pelo que, quando os animais atacaram o portão, o homem estava preparado e levantou a sua arma. E é por isso que, desde esse dia em diante, os animais selvagens estão dispersos, mas o Cão, o homem e a mulher são aliados num mundo desafiante.

Em termos de evolução, os humanos valorizam tudo o que não signifique uma ameaça imediata. No caso dos cães, não havia problema nenhum com os que andavam a vasculhar, mas não se passou o mesmo com os predadores. Com o passar do tempo, os humanos selecionaram e modificaram de forma artificial os que andavam a vasculhar, transformando-os em algo mais, nomeadamente com uma segunda domesticação, a domesticação de cães em casa e o desenvolvimento de raças.

Uma nova peça do puzzle surgiu em junho de 2019. Uma equipa de investigadores, liderada pela psicóloga cognitiva Juliane Kaminski, da Universidade de Portsmouth, descobriu uma diferença significativa entre a estrutura muscular facial de cães e lobos, algo que acreditava que se desenvolvera ao longo de milhares de anos, especificamente para encorajar e acelerar a domesticação ao melhorar a comunicação com os humanos.

Apesar de a anatomia muscular de lobos e cães ser muito semelhante, um músculo responsável por levantar a sobrancelha interna estava uniformemente presente nos cães, mas não nos lobos. «Curiosamente, este movimento aumenta a pedomorfose e assemelha-se a uma expressão que os humanos fazem quando estão tristes, pelo que a sua realização pode suscitar uma resposta de carinho», comentavam os investigadores em Proceedings of the National Academy of Sciences. A pedomorfose é definida como a retenção de traços juvenis ao longo da vida — isto é, os cães haviam encontrado uma forma de aproveitar ao máximo os seus olhos de cachorrinhos e se parecerem mais com bebés. Os cientistas lançaram a hipótese de as sobrancelhas expressivas dos cães resultarem de seleção natural com base nas preferências dos humanos. «Quando os cães fazem esse movimento, parecem suscitar nos humanos um forte desejo de cuidarem deles», observou Kaminski.

A investigação inicial em pedomorfose sugeriu que este movimento atrativo é o motivo central por que, gradualmente (ao longo de muitos séculos), os cães começaram a parecer-se menos com lobos. A marca genética mais visível nos lobos — orelhas pontiagudas e um focinho comprido — é hoje inexistente em quase todos os cães, que começaram lentamente a ter focinhos mais achatados e orelhas mais moles. Em 1997, Deborah Goodwin, John Bradshaw e Stephen Wickens relataram na revista Animal Behaviour que, quanto mais um cão se parecesse com um lobo, maior a sua tendência para exibir um comportamento lupino. Foram analisadas dez raças de cães em relação a quinze características agressivas e submissivas amplamente atribuíveis a lobos. Os investigadores concluíram que as raças pequenas, como a cavalier king charles spaniel e a norfolk terrier, nenhuma delas confundível com lobos, mostravam, respetivamente, apenas dois e três comportamentos lupinos; o pastor-alemão, criado de modo que se assemelha muito mais a um lobo, tanto em aparência como em tendências agressivas, exibia onze. Havia uma ou duas aparentes anomalias nas suas conclusões — em especial, o golden retriever a exibir doze de quinze comportamentos lupinos —, mas isto pode ser explicado tendo em conta os seus antepassados ancestrais: como cães de caça, os velhos hábitos são difíceis de perder.

E havia outra questão: à medida que os cães lentamente se tornaram companheiros dos humanos, era útil distingui-los uns dos outros. Além de que um nome concedia um carácter — Ambush, Plotter, Guard [Nomes que remetem para atos que atestam a utilidade dos cães, significando, respetivamente: emboscar, conspirar, guardar. (N. da T.)] — e, ao longo do tempo, era também um sinal de afeto (Fluffy, Bella, Ludo). Como veremos no capítulo seguinte, os nomes que damos aos nossos cães são demonstrativos de como os papéis deles nas nossas vidas se alteraram. E observamos, cada vez mais, que lhes estamos a dar os mesmos nomes que damos aos nossos filhos.

O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico

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