Cristiana de Sousa quis honrar as feiticeiras: “Identifico-me com elas”

Para aBRUTAmente, a artista Cristiana de Sousa aka Andorinha inspirou-se na tradição popular sobre bruxas e feiticeiras para abordar a igualdade de género. Exposição está patente até dia 8 de Maio na Casa da Cultura de Santa Cruz, na Madeira

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Quando a convidaram para fazer a sua primeira exposição individual na Casa da Cultura de Santa Cruz, na Madeira, Cristiana de Sousa (n. 1989) aka Andorinha resolveu cruzar duas dimensões da vida que muito lhe interessam: a tradição popular e a igualdade de género. Chamou-lhe aBRUTAmente. Ainda pode ser visitada até dia 8 de Maio.

Cresceu na Camacha, freguesia agrícola de Santa Cruz, a mais de 700 metros de atitude, onde até há poucas décadas era comum recorrer a benzeduras, orações, rituais com azeite ou ervas para curar maleitas. Quando se pôs à procura de histórias de bruxas e feiticeiras, toda a gente parecia ter uma para contar, baixinho, não fosse o diabo tecê-las. Divertiam-se a assustar homens que caminhavam sozinhos, por caminhos estreitos, sem iluminação, tarde da noite. Assumiam a forma de animais e faziam-se carregar até onde lhes dava jeito.

Tais crenças e superstições vêm de tempos imemoriais. Em 1484, uma bula papal condenava a prática da feitiçaria. Logo nas primeiras constituições sinodais do Bispado do Funchal (1585) se pode ler que “mui abominável é a reprovável arte de feitiçaria, adivinhações e agouros de que algumas pessoas em grande ofensa de Nosso Senhor usam em diversas maneiras, usurpando para si o que somente é de Deus”.

A devoção católica resiste no arquipélago, mais vivida no Natal do que na Páscoa, porventura pela influência franciscana do início do povoamento. Como resiste o medo do demónio, das feiticeiras, do mau olhado. Ainda há quem diga que é no Campo Grande, no Paul da Serra, que o demónio se reúne com as feiticeiras, sendo o fogo-fátuo sinal da sua presença. 

Nas histórias que ouviu contar não, mas nas suas pesquisas Cristiana de Sousa encontrou a distinção entre feiticeiras e bruxas. As primeiras, mais antigas, dominariam o uso das plantas, da medicina natural, os mistérios da natureza, até poderiam pregar partidas, mas não estariam ao serviço do mal. As segundas, posteriores, seriam criaturas maléficas, feitas com o diabo, praticantes de rituais pagãos. Na caça às bruxas da Europa dos séculos XVI e XVII tudo se confundiu.

Em Portugal, a Inquisição ocupou-se sobretudo dos judeus e dos criptojudeus, cristãos-novos ou marranos, que acusava de crimes de fé. Seguiram-se as práticas sexuais que punham em causa o matrimónio, como a bigamia e a sodomia. “As acusações de bruxaria ou feitiçaria foram poucas”, afiança a historiadora Cristina Trindade. Na Madeira menos ainda. Ali não se montou tribunal do Santo Ofício. Havia, sim, um comissário incumbido de instruir processos que, se assim entendesse, os podia remeter para o continente. Visitas da inquisição? Duas.

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Na Europa Central foi diferente. A estudiosa da literatura Luísa Paolinelli indica o livro Malleus maleficarum (O Martelo das Feiticeiras, 1486-1487), dos inquisidores alemães Jakob Sprenger e Heinrich Kramer, como a obra mais influente. Encaravam a “dissidência como perversão herética e teológica, acusando as mulheres de se rebelarem à Santa Igreja e de viverem à sua margem”, associando-as “ao sexo, à perversão e à corrupção do mundo”. E logo lhe ocorre o jesuíta alemão Friedrich von Spee que em 1621 publicou, sob anonimato, Cautio Criminalis (Precaução para os Promotores). “Ele não encontrou culpadas entre as pessoas que ouviu em confissão, o que não as salvou de serem torturadas e mortas.” Primeiro, queimaram-se mais mulheres, velhas, sós, a viver à margem. Depois, também homens e crianças. Quem mais pressionava? Os prelados especuladores, os juristas gananciosos e o vulgo invejoso ou ressentido.

Escreveu a filósofa italiana Silvia Federici, no seu livro Mulheres e Caça às Bruxas (2019), que muitas das condenadas à fogueira por bruxaria eram mulheres que desafiavam o seu tempo: podiam ser curandeiras ou praticantes de magia, atrever-se a viver a sua sexualidade ou ter caído na pobreza, muitas vezes enviuvado, dependendo da caridade, o que contrariava a nova ética protestante. Foram perseguidas, torturadas, mortas por serem mulheres, razão pela qual se converteram em ícone feminista. A caça às bruxas serviu para as afastar das práticas médicas, para as sujeitar ao controle da família, mas também para facilitar a expropriação de terras, a acumulação de riqueza, para fomentar uma desigualdade económica que perdura. E o fenómeno não terminou. Persiste nalgumas partes da Ásia e de África.

Cristiana pôs-se a pensar nessa narrativa e no que resta dela na linguagem. Uma palavra que é positiva no masculino (feiticeiro é um homem sábio, que conhece os segredos da natureza, que percebe de química, de botânica) e negativa no feminino (feiticeira é alguém capaz de manipular sentimentos, de moldar vontades). O estereótipo de fealdade e malvadez propaga-se nas histórias infantis e até na promoção turística de algumas localidades com uma história de caça às bruxas. É como se na mulher o conhecimento fosse mais perigoso.

Servindo-se de uma tinta que brilha com uma luz negra, que experimentou num trabalho que fez para teatro, Cristiana concebeu uma peça de 13 metros a que chamou Más-línguas. E um conjunto, Alfa beta, que alude aos brinquedos sexuais. “É um abecedário em torno da sexualidade feminina”, diz, insurgindo-se contra a centralidade da sexualidade masculina. Na sala principal está o Bestiário, figuras disformes de gato, cão, galinha, cabra, serpente ou outros animais criadas a partir de histórias que ouviu sobre a suposta capacidade de metamorfose das feiticeiras ou bruxas. E alguns “novelos”, algo indefinido que na tradição oral corporiza os saberes que estas mulheres procuravam passar a alguém no seu leito de morte.

“Não são bestas, são mulheres bestiais”, afirma, como que reclamando o grito feminista “somos as netas de todas as bruxas que vocês não conseguiram queimar”. “Vejo as feiticeiras como mulheres não convencionais e que, por isso, eram alvos a abater ou pelo menos a evitar. E identifico-me com isso. Também não encaixo nos cânones.” 

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