O 25 de Abril iluminou-se com um discurso do Presidente

O discurso do Presidente, bem para lá da sua erudição, é um discurso de coragem e de inteligência, que arrasa a ideia absurda de que o passado pode ser depurado com os julgamentos do presente.

O Presidente da República dedicou o seu discurso do 25 de Abril aos 60 anos do início da Guerra Colonial e à memória histórica, e, no final, recebeu pela primeira vez aplausos de todas as bancadas. Com esse consenso, Marcelo Rebelo de Sousa pôde ficar com a certeza de que o seu objectivo tinha sido alcançado. E ficou: sobre um tema divisivo, lançou pontes; sobre uma memória ameaçada pelos extremos, introduziu saber e ciência; num debate tenso que alimenta o vírus divisivo do radicalismo, acrescentou ideias e a urgência de uma “lúcida serenidade”. Foi um dos melhores discursos do Presidente da República.

E foi-o porque, bem para lá da sua erudição, é um discurso de coragem e também um discurso no qual a inteligência arrasa a ideia absurda de que o passado pode ser depurado com os julgamentos do presente. Foi um discurso de coragem porque num tema sensível, em que se cruzam a opressão colonial ou o legado racista que persiste no nosso tempo, o Presidente afirmou sem reservas que a memória histórica não se limita à oposição entre a autoflagelação e a autoglorificação. E foi um discurso inteligente porque nos lembrou que não se pode ler o passado sem o enquadrar noutros passados, sem se usarem precauções para o interpretar, sem se considerar que muitos dos soldados que estiveram na frente africana foram também eles vítimas de um regime anacrónico e cego, incapaz de ver que o tempo do colonialismo acabara em 1945.  

O que o Presidente pede, afinal, é que o país não caia nos maniqueísmos justicialistas de uma realidade simplificada e que se olhe e assuma o passado em toda a sua extensão e complexidade. Que se ouçam as vítimas, mas que se perceba a dinâmica da História secular; que se saiba e reconheça que houve brutalidade e violência – o que o PÚBLICO fez recentemente com a publicação de uma série de fotografias inéditas que geraram polémica –, mas que se entenda que quem fez Abril esteve nas frentes africanas. O passado deve ser lido à luz dos “avanços civilizacionais” que tornaram o colonialismo uma peste, o racismo uma aberração e a escravatura um horror, mas sem a tentação de o cristalizar na oposição fácil e perigosa entre bons e maus, vítimas e bandidos, passando num ápice da ideia da glória imperial para o desejo de a “demolir”.

É “uma missão ingrata”, admite o Presidente. Que só terá sucesso se houver uma visão em que caibam todas as repulsas, todos os factos e todos os desconfortos. A Guerra Colonial foi um horror, mas não podemos culpar a geração dos nossos pais que foi forçada a combatê-la.

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