A arte da entrevista

A entrevista é o único exercício jornalístico que vive exclusivamente de um diálogo em que o jornalista assume um papel secundário para deixar o entrevistado expor os seus pontos de vista. É esse ponto de vista que interessa ao leitor – ou então o entrevistador enganou-se no entrevistado.

Num correio enviado ao provedor, o leitor Lourenço Noronha formula interrogações a partir das quais desenvolve algumas reflexões sobre a “arte” da entrevista. Tendo como ponto de partida uma entrevista feita pela jornalista Ana Brito a Marc Rechter (o empresário holandês que sugeriu ao Governo português lançar-se na produção de hidrogénio verde – “Ficou claro” que a EDP e GALP quiseram afastar o Resilient Group do hidrogénio – PÚBLICO, 21 Fev. 2021), o leitor questiona, em particular, a “escolha das perguntas a colocar aos entrevistados e sobretudo ao modo de as formular.”

À laia de introdução à sua análise, o leitor cita um artigo em que Manuel Sobrinho Simões, em vésperas de ser director por um dia do PÚBLICO, responde, de acordo com o que escreve a jornalista que o entrevistou, “‘não sei’ com a maior simplicidade e sinceridade e sem um pingo de vergonha”, a algumas das perguntas que lhe são feitas.

Depois volta às questões que Ana Brito colocou a Marc Rechter: “Assim, a jornalista Ana Brito pergunta:

1. se o entrevistado ‘sabe quem é que foi decisivo’ para que a EDP, a Galp e a REN decidissem participar no projeto do hidrogénio. Rechter responde ‘não’.

2. qual a motivação daquelas empresas para não quererem que a empresa do entrevistado liderasse o projecto (‘isso devia-se a quê? A não quererem perder protagonismo? A quererem garantir mais apoios?’). O entrevistado responde ‘isso terá de perguntar-lhes...’”.

3. qual foi o momento em que ‘houve o ‘clique’? O que é que fez o Governo português acordar para o hidrogénio?’. Rechter começa por responder ‘é uma pergunta para o Governo’.

4. se o entrevistado ‘acha estranho que, havendo uma investigação sobre este tema, não tenha sido chamado a depor?’. Rechter responde ‘não sei, porque nunca fui investigado, felizmente não tenho experiência disso’”.

Este diálogo leva o leitor a concluir que “o entrevistado parece, pois, em alguns momentos pelo menos, seguir o exemplo lúcido de Sobrinho Simões, e assumir que não pode responder àquilo que não sabe”.

E continua o leitor: “Perguntar a alguém se sabe como é que uma empresa de que não faz parte tomou uma decisão, e quem é que foi crucial para que esta fosse tomada; qual a motivação para actos dos quais não é autor; o que, e em que momento levou o Governo (de que não faz parte) a tomar uma determinada decisão; e se é ou não estranho que uma investigação criminal tenha seguido uma ou outra via investigatória – perguntar a alguém isto, dizia, não será um exercício votado ao insucesso (se o entrevistado tiver o cuidado, como parece ser aqui o caso, de não se pronunciar sobre aquilo que não lhe diz respeito), ou à especulação (se o entrevistado – como poderia ter aqui acontecido, e certamente já se verificou em muitos outros casos – tivesse aproveitado o repto da jornalista para expor teorias que, por muito interessantes ou verosímeis que se mostrassem, nunca poderiam passar disso mesmo)?”

“Dito de outro modo: perante aquelas concretas questões, o entrevistado tinha uma de duas opções: ou respondia que não sabia (porque, de facto, não podia saber o que lhe era perguntado); ou discorria sobre motivações ou processos alheios. Em nenhum dos casos, creio, ficaria o leitor mais próximo da verdade quanto ao objecto das questões.” Por fim, o leitor conclui as suas reflexões com mais uma pergunta, esta de carácter geral: “Que directrizes deve um jornalista seguir quando define as questões a colocar numa entrevista?”

Transmiti as dúvidas do leitor à jornalista Ana Brito, que a elas responde traçando um quadro geral das zonas de sombra que envolvem os negócios do hidrogénio, antes de concluir: “Nas entrevistas, só saberemos da capacidade ou vontade de o entrevistado responder, se fizermos as perguntas. É trabalho do jornalista fazer as perguntas todas que entender que fazem sentido para melhor compreensão do tema abordado com o entrevistado.”

Em jargão jornalístico, chama-se “pesca à linha” ao método utilizado por Ana Brito nas perguntas citadas pelo leitor (perguntas fechadas, que permitem uma resposta sim/não/não sei), ainda que na sua resposta a jornalista defenda a “pesca de arrasto” (perguntas abertas para ver o que vem à rede). Ambas são legítimas e, por vezes, a primeira é complementar da segunda.

As interrogações que o leitor formula na sua estruturada análise encontram resposta nos cursos de Jornalismo, mas também são algo com que os leitores são confrontados no dia-a-dia sem que tenham necessariamente reflectido sobre o assunto. Comecemos pelo princípio, isolando a temática a que se refere o leitor, embora sem pretender teorizar sobre uma “arte” tão vasta em tão poucas linhas.

William Troop, editor-chefe do programa Weekend All Things, da rádio pública norte-americana, considera que “o propósito de qualquer entrevista é ajudar o seu destinatário a conhecer algo mais [o sublinhado é meu] sobre uma personalidade em foco, um assunto de importância nacional, um projecto artístico”, um investimento avultado, etc.. Neste sentido, o entrevistado não pode ser visto como um inimigo do entrevistador, mas antes como um aliado. Na verdade, a entrevista é um processo analítico de substituição ao qual o jornalista recorre quando não é capaz de fornecer, ele mesmo, as explicações que uma situação ou acontecimento requerem. Assim é, em teoria.

Na prática, o jornalista não raramente procura, por razões de ego profissional ou para fazer alarde dos seus conhecimentos, afirmar-se contra o entrevistado, confundindo a entrevista com um combate de boxe. Por seu turno, o entrevistado pretende, outras tantas vezes, esconder o que não quer que venha a público, deixando filtrar apenas o que lhe convém. Por fim, o leitor/ouvinte/telespectador (o destinatário) quase sempre deseja encontrar na entrevista um reconforto (sobretudo nas áreas da política e do futebol) para as suas próprias convicções que, facciosamente, confunde com a realidade – sem nunca o admitir, é claro…

No plano formal, uma pergunta deve ser clara e exigir uma resposta clara. Uma pergunta “encaracolada” presta-se a que o entrevistado responda “ao lado” sem correr o risco de ser chamado à pedra. Mas uma pergunta clara, numa entrevista ideal, exige que o jornalista conheça bem a matéria que vai tratar. Foi esse conhecimento, sintetizado em dossiers preparados por “pesquisadores” (researchers), que valeu a Larry King (Live CNN) o cognome de “jornalista que entrevistou o mundo em directo” ou à italiana Oriana Fallaci ganhar o estatuto de “monstro sagrado” da entrevista escrita.

E para mais não dá esta coluna. Na entrevista em apreço, a jornalista Ana Brito faz perguntas pertinentes. Mas, de acordo com a lógica que ela própria invoca, das duas, uma: ou o entrevistado respondia fugindo à pergunta e a jornalista tinha dados sobre o assunto que lhe permitiam “repicar” com uma pergunta ainda mais fechada, mas específica, obrigando o entrevistado a completar a sua resposta ou, não se verificando essa premissa, tanto a pergunta como a resposta são informativamente inúteis e dispensavam publicação, na medida em que, com elas, o leitor não fica a conhecer algo mais sobre o entrevistado nem sobre o tema da entrevista.

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