O pescador, o golfinho e as crianças de Aniki-Bobó

Um passeio num porto de pesca algarvio fez nascer uma personagem e uma história. Quem a desenhou reenvia-nos para as crianças do filme Aniki-Bobó, de Manoel de Oliveira.

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Paulo Galindro
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Esboços preparatórios que o ilustrador gosta de pôr nas guardas dos livros Paulo Galindro
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Capa do livro “Pirilampo, o Velho Pescador de Estrelas”, da Edições Garatuja Paulo Galindro

A história é narrada por António, que nasceu “numa aldeia de pescadores, junto à foz de um rio muito grande”. Diz-nos o rapaz que vivia “numa casa que tinha chão de areia e sabor a maresia. Uma terra com gaivotas a decorar os telhados e os barcos, ruas com palmeiras, mulheres de canastras à cabeça e saias compridas, rodadas”.

António era fascinado pelas aventuras de Pirilampo: “Um velho pescador que, já sem forças para se fazer às marés, passava os dias e muitas vezes parte das noites, sentado num canto do cais, perdido nos céus do oceano, como quem espera ainda um grande sonho. Pirilampo era agora um pescador de estrelas e de gentes.”

A alcunha “Pirilampo” ganhou-a em resultado do cachimbo sempre aceso, a iluminar a noite e o sorriso sábio. Será este ex-pescador de alto-mar que irá ajudar as crianças da aldeia a salvar um golfinho-bebé que se perdeu da mãe e foi dar à praia.

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O autor do texto, Carlos Canhoto, que não vive perto do mar, contou ao PÚBLICO que esta história nasceu no Algarve, em Quarteira: “Num passeio nocturno junto ao molhe do porto de pesca, encontrei um velho pescador com os olhos postos no negro do mar, fumando o seu cachimbo. Estava só, ao vento e ao frio, e o negro-ébano da sua pele levou-me a imaginar que estaria sonhando com outras paragens, que teria os pensamentos noutros cais.”

Quando decidiu que o conto iria destinar-se ao público escolar, acrescentou-lhe o salvamento de um golfinho protagonizado por crianças. Outra decisão foi a de que as ilustrações seriam de Paulo Galindro. Como a editora que estava interessada na publicação “não seria capaz de rentabilizar economicamente a edição”, o autor publicou o livro através de uma marca editorial própria que, entretanto, tinha criado: Garatuja – Semeando Afectos.

Dos clássicos às tatuagens

O ilustrador também contou ao PÚBLICO o seu processo criativo: “Desde o primeiro momento, tive muita vontade de que o livro fosse beber inspiração às ilustrações dos velhos clássicos da literatura como Robinson Crusoe e Moby Dick. Ilustrações que ocupavam uma página, muitas vezes executadas em técnica de xilogravura.”

Revelou que ainda lhe “passou pela cabeça” fazer as ilustrações “de um modo purista, recorrendo ao linóleo e à sua posterior impressão, que depois seria digitalizada e trabalhada em ambiente digital”. Mas o tempo, como diz, “é sempre uma variável diabólica nestas coisas dos livros”. Optou então pela “ilustração digital de raiz, numa reinterpretação gráfica dos velhos clássicos”.

Esse olhar para os clássicos também ditaram a escolha da fonte do livro (Century Schoolbook) e a utilização de letras capitulares no início de cada página ou capítulo, uma solução a que diz recorrer muitas vezes. Esta “perseguição” aos velhos clássicos resultou também numa incursão ao universo das tatuagens.

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“Para estes lobos-do-mar – como o velho Pirilampo –, as tatuagens eram vistas como protecção, um diário de viagem e até memorabilia de paixões fortuitas”, descreve Paulo Galindro, que é também arquitecto. E acrescenta: “Eu queria que o livro fosse como uma tatuagem. E por isso investiguei também a estética da tatuagem old school e também a denominada Sailor Jerry, que acaba por marcar muito as ilustrações do livro.”

Assim, ficou a saber, pela iconografia e simbologia das tatuagens dos marinheiros, que estas eram “muito mais do que um adorno decorativo”. Exemplos de representação: “Uma andorinha marcava cinco mil milhas náuticas; uma estrela náutica era uma bússola mística para encontrarem sempre o caminho para casa; uma tartaruga assinalava o ritual de iniciação de quem atravessava pela primeira vez a linha do equador; uma âncora registava a travessia do Atlântico, uma sereia marcava um amor num porto.”

Sobre as personagens infantis do livro, conta: “Trouxeram-me à memória as personagens do filme Aniki-Bobó, de Manoel de Oliveira.” E garante: “Qualquer semelhança com elas não é mera coincidência (quem fala a verdade não merece castigo).”

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Diz ainda ter aproveitado para “prestar uma homenagem sentida ao mestre David Bowie”, mas não revela onde. “Vão ter de comprar o livro para descobrir.”

Abelhas, fantoches e marionetas

Carlos Canhoto só viu o trabalho do ilustrador depois de terminado. Ficou satisfeito. “Achei que tinha valido a pena ter escrito o texto só para ver as fantásticas ilustrações do Paulo.”

O autor do texto é apicultor e vive num monte no Alentejo: “Tenho também uma horta e um pequeno pomar com árvores que eu mesmo plantei e trato.” No entanto, ocupa-se de outras actividades: “Gosto muito de inventar histórias e de dar vida a fantoches e marionetas.” Leva-os até a escolas, bibliotecas e lares, onde há muito tempo dinamiza sessões de leitura e conta histórias.

Foi numa animação que fez em Ílhavo, no Museu do Bacalhau, que transformou o Pirilampo num dos heróis da Terra Nova. Inicialmente, no Algarve, a figura do pescador tinha-o levado para outros destinos: “Levou-me ao sofrimento dos velhos trabalhadores cabo-verdianos em São Tomé, às saudades com que vão morrendo das suas ilhas, onde não conseguiram voltar.”

Vencedor do prémio Maria Rosa Colaço 2006 com O Monte Secou, escrito com Zé Gandaia (editado pela Pé de Página em 2007), tem mais de uma dezena de títulos publicados, fazendo parte do Plano Nacional de Leitura.

Sobre este livro, diz, numa reflexão sincera: “Nunca vivi junto a uma praia, não sou marinheiro. Aprendi as artes da pesca com o meu pai e acho que o Pirilampo é mais uma das histórias que acabei por viver sem ter vivido – uma história que hoje já vive naquela área das memórias em que não temos a certeza se terão sido inventadas ou vividas.”

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Quanto ao velho pescador, continuou por algum tempo no cais à espera da sereia que o salvou de um cardume de bacalhaus nas águas gélidas da Terra Nova.

António, o narrador, cresceu, partiu e regressou. O Pirilampo já não estava no cais, mas o seu cachimbo continua até hoje a iluminar-lhe a memória.

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