Covid-19: Portugal entre os países europeus que ignoram doentes mentais graves nos planos de vacinação

Grupo de investigadores apela às autoridades de saúde europeias e nacionais para que os planos de vacinação ainda possam ter como prioritárias pessoas com doenças mentais graves na comunidade.

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Estima-se que uma em cada 20 pessoas na Europa tenha uma doença mental grave Daniel Rocha

Uma equipa de cientistas europeus da área da psiquiatria analisou os planos de vacinação da covid-19 de 20 países na Europa e verificou que 16 deles não incluem os doentes com perturbações mentais graves na comunidade como prioritários. Portugal é um desses países. Em vários países, a excepção acontece para os doentes mentais graves que estão institucionalizados. Num artigo científico publicado na última edição da revista The Lancet Psychiatry, alerta-se que há provas científicas que mostram que as pessoas com doença mental grave têm um maior risco de infecção de SARS-CoV-2 e morte por covid-19 do que outros grupos.

Marisa Dias é vice-presidente da Organização Europeia de Médicos Especialistas de Psiquiatria e foi uma das autoras do artigo. A investigadora portuguesa do Centro Nacional para a Saúde Mental britânico (em Cardiff, Reino Unido) indica ao PÚBLICO que vários estudos já mostraram que pessoas com doença mental grave têm um elevado risco de infecção e de complicações quando têm covid-19. Entre as doenças mentais graves estão a esquizofrenia, a doença bipolar ou a depressão grave. Estima-se que uma em cada 20 pessoas na Europa tenha uma doença mental grave e que esses doentes morram dez a 20 anos mais cedo do que o resto da população.

“Este grupo tem uma probabilidade 65% maior de contrair covid-19 e uma probabilidade até duas ou três vezes maior de morrer se contraírem o vírus do que população geral”, informa. Relativamente a outros grupos prioritários, como pessoas com doença renal ou cardíaca, têm um risco igual ou acrescido de morte associado à covid-19.

Há quatro países europeus analisados no estudo que têm como prioritários nos seus planos de vacinação doentes com perturbações mentais graves: o Reino Unido, a Alemanha, a Dinamarca e os Países Baixos. Como teve sempre em conta as provas científicas sobre o impacto da covid-19 nestes doentes, o Reino Unido deu-lhes prioridade desde o início do seu plano de vacinação, realça a investigadora. Por exemplo, através de um algoritmo da Universidade de Oxford, viu-se que um homem de 55 anos com doença mental grave (sem outros factores de risco) e um outro com cirrose tinham um risco igual de morrer com covid-19.

Já os restantes três países mencionados fizeram uma revisão das provas científicas posterior ao início do plano de vacinação e incluíram as pessoas com doenças mentais graves como prioritárias depois. No caso da Dinamarca considerou-se um estudo de coorte que concluiu que a doença mental grave e o uso de antipsicóticos estão ligados a um maior risco de mortalidade associada à covid-19.

Um apelo às autoridades

Miguel Bajouco, médico psiquiatra do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, nota que em Portugal o plano de vacinação incluiu como prioritárias na primeira fase pessoas com doença mental grave institucionalizadas. Aqui, estima-se que estejam incluídos cerca de 4000 doentes. No entanto, relembra que essa é uma pequena parte das pessoas com doença mental grave no país. Só com esquizofrenia calcula-se que existam em Portugal aproximadamente 48 mil pessoas.

“Isto significa que existe um enorme número de pessoas que sofrem de doença mental grave que não estão institucionalizadas, ou seja, vivem na comunidade e que não fazem parte de um grupo prioritário de vacinação”, avisa o também investigador na Universidade de Coimbra, que reuniu a informação sobre o plano de vacinação em Portugal para este trabalho.

Por isso, no artigo agora publicado na The Lancet Psychiatry pede-se que os países europeus considerem melhor as provas científicas disponíveis sobre o maior risco de infecção, hospitalização e morte de pessoas com doença mental grave para que estas passem a ser prioritárias nos planos de vacinação. “Apelamos às autoridades europeias (Conselho, Parlamento e Comissão), assim como às autoridades de saúde nacionais e à comunidade científica, para que tenham em conta estas provas resumidas e recomendações descritas no artigo”, lê-se no próprio artigo, que também tem como autores representantes de doentes e familiares.

Marisa Dias sublinha que as principais organizações europeias de saúde mental se juntaram agora para fazer algumas recomendações que são divulgadas no artigo. Além de recomendarem que se incluam pessoas com doença mental grave nos grupos prioritários dos planos de vacinação, recomenda-se a participação de associações de doentes e familiares no desenvolvimento dos planos de vacinação.

“Esperamos que os resultados deste estudo e a evidência científica existente levem a que o plano de vacinação seja alterado para que as pessoas com doença mental grave a viver na comunidade deixem de ser discriminadas. É preciso urgentemente corrigir esta desigualdade”, espera a investigadora. Marisa Dias destaca que esta não é uma acção isolada e que desde o início da pandemia que as organizações europeias de saúde mental têm vindo a avaliar o impacto da covid-19 na saúde mental.

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