Será que estamos a compreender o desafio?

Ver a solidariedade do nosso SNS é das coisas mais bonitas da nossa democracia, mas não podem ser só os doentes críticos a viajar por todo o país, tem que viajar também o nosso sentido de cidadania, de igualdade, de bondade e de humanidade.

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LUSA/MIGUEL A. LOPES

Este vai ser o período mais difícil. Será que vamos aguentar os nervos e as emoções na dose recomendada? Ainda está frio, dias cinzentos e o tempo parece que não passa. Quando o tempo parece longo demais é porque estamos a sofrer. Estamos todos fartos de números e curvas e apesar de tentarmos trazer histórias para dentro do nosso coração, o tempo joga a desfavor da nossa compreensão colectiva para o desafio. O número de novos casos é o medidor mais instantâneo dos comportamentos, e este está a baixar com alegria, mas será que vamos compreender porque é que temos de continuar confinados?

O grande limitador, o grande afunilador, e onde se concentra o desafio desta pandemia está no número de internamentos. Claro que quantos mais casos, mais internamentos e mais mortes, e as mortes são a página mais triste de todas as histórias. Mas o número de internamentos é que nos traduz com clareza a pressão sobre os serviços de saúde e que condiciona dois dos componentes mais importantes desta equação complexa, a exaustão dos profissionais de saúde, e os danos colaterais em termos de saúde não-covid, dentro e fora dos hospitais.

A estratégia para desconfinar está inevitavelmente indexada ao número de internamentos e em particular ao número de internamentos em Cuidados Intensivos (UCI). Nós chegamos aos 904 (05/02/2021) doentes em UCIs por covid-19, e as outras doenças não desapareceram. Estamos com 803 (13/02/2021), após a maior descida de sempre num dia de doentes em UCI, ainda assim percebam que a descida é muito lenta, porque cada doente em UCI tem uma média de três semanas de internamento. A capacidade das UCIs prévia à pandemia andava à volta dos 500, para que percebam a dimensão do desafio, que não passa por comprar ventiladores, mas sim por formar, integrar, e treinar médicos e enfermeiros, e tentando manter a nossa capacidade de trabalho e sanidade mental. Os órgãos de saúde e os decisores políticos apontam para a fasquia dos 200 doentes em Cuidados Intensivos para que se possa desconfinar, parece-me um número sensato. Os sistemas de saúde estão a ser postos à prova, mas o que está verdadeiramente a ser posto à prova é o nosso altruísmo, a nossa cidadania e a nossa compreensão colectiva deste desafio das próximas semanas que prometem ser longas, enquanto a campanha de vacinação faz o seu caminho.

É emocionante ver hospitais a ser solidários uns com os outros, e doentes críticos, em risco de vida, a viajar numa ambulância de Lisboa para o Porto, ou até para a Madeira. Ver a solidariedade do nosso SNS é das coisas mais bonitas da nossa democracia, mas não podem ser só os doentes críticos a viajar por todo o país, tem que viajar também o nosso sentido de cidadania, de igualdade, de bondade e de humanidade que tem que chegar a todos os cantos do país e entrar em todas as casas.

Temos assistido a atitudes de apoio aos profissionais de saúde de uma ternura que me enchem de orgulho alheio pelos que levam a cabo essas injecções de emoções bonitas, em forma de refeições, camas, docinhos ou apenas palavras que alimentam as almas que vão fraquejando. Mas eu diria que é primordial que estes, que são os melhores dos melhores, ao dedicarem o seu tempo e dinheiro para mostrar o seu papel numa sociedade que se pretende humana, canalizem e reorientem a beleza das suas acções e de todos que arrastam com vocês, para fora dos hospitais. Eu, bem de dentro de uma UCI, cansado de trabalhar e de ouvir monitores e ventiladores vos peço que protejam primordialmente os que para que se salvassem vidas perderam o emprego ou negócio, ou a casa, ou estão com dificuldades em alimentar os seus filhos. É para estes que temos que disparar o que de melhor temos para dar ao mundo, a nossa entrega, a nossa coragem, a nossa humanidade, a nossa empatia e o nosso amor. Tudo em prol dos mais frágeis. Porque vai ser pela forma que tratamos os mais fracos que vai ser contada a história da pandemia, não será pelas refeições nos hospitais. A cultura está a ser vítima, mas também é a solução. Usemos as boas cabeças, as vozes, os traços, as notas, as mãos, a imaginação e a arte na mistura de todas as suas formas para que o mundo fique um lugar mais bonito e com mais sorrisos.

Ganhou-se uma grande luta contra a desinformação que é uma ajuda, mas a boa informação bem maturada e bem entregue ainda é a chave para o nosso sucesso. A rebeldia contra a cidadania, não é uma expressão de liberdade, é uma posição firme de desrespeito pelo sofrimento dos outros por conduzirem à perda de mais vidas, e por prolongarem o estrangulamento da nossa liberdade e as perdas na economia.

Será que estamos a compreender o desafio?

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