Von der Leyen e a Invencível Armada

A presidente da Comissão, que fez da vacina a sua imagem de marca e que tinha trabalho para apresentar, delapidou desnecessariamente o crédito acumulado, ao não reconhecer os erros e ao responder às criticas com ataques a terceiros em todas as direcções.

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1. A União Europeia teve uma semana má. Navega à vista em algumas questões essenciais – das vacinas às relações com os outros grandes pólos de poder, dos EUA à China, passando pela Rússia. Reage quase sempre na defensiva ou de acordo com o interesse de curto prazo dos seus países maiores. Vê inimigos onde não devia ver e amigos onde só tem inimigos. Preocupa-se mais em disfarçar os erros em vez de corrigi-los, recorrendo a meias verdades e a uma espécie de “nacionalismo europeu”, que pode funcionar no imediato, mas que se pode revelar um desastre no futuro.

O caso mais evidente, do ponto de vista do seu impacte mediático, é o das vacinas, embora não seja o único. A Comissão cometeu alguns erros de avaliação no processo de aquisição conjunta das vacinas a várias farmacêuticas que as poderiam vir a produzir. Esses erros traduzem-se hoje na falta de abastecimento e na lentidão do processo de vacinação na maioria dos países europeus. Uma coisa boa – comprar as vacinas em conjunto, para utilizar o músculo financeiro e a dimensão da União – corre o risco de transformar-se num processo lento e deficiente, sobretudo quando comparado com o Reino Unido e com os Estados Unidos.

Já sabemos quais foram os erros da Comissão: querer comprar mais barato e fechar os contratos com as farmacêuticas mais tarde. Por mais que barafuste junto das empresas que as produzem e que ameace levá-las a tribunal, isso não resolve o problema. Em vez de encontrar formas de ultrapassá-lo, a Comissão e alguns dos governos europeus preferem apontar o dedo e as responsabilidades aos outros. O Reino Unido é o alvo ideal.

Se o “Brexit” foi uma coisa má, então nada de positivo pode vir do Reino Unido. A tentativa de bloquear as exportações das farmacêuticas com fábricas na Europa continental para o Reino Unido, EUA ou Canadá já deu maus resultados. Primeiro, quando resolveu impor uma fronteira entre as duas Irlandas, depois de ter passado três anos defender a sua inexistência, para salvar o acordo de paz. O erro só durou 48 horas. Depois, com os protestos veementes de países terceiros, afectados indirectamente por esta tentativa europeia de resolver o problema das suas vacinas na secretaria, levantando unilateralmente barreiras às exportações. Finalmente, com as próprias farmacêuticas a terem de explicar a complexidade das cadeias de abastecimento que lhes permitem fabricar o produto final, que vão das matérias-primas às embalagens e que chegam dos mais variados pontos do mundo.

Quanto ao Reino Unido, esta decisão arbitrária podia ter colocado em risco a segunda dose de milhões de vacinados, revelando a falta de discernimento das decisões tomadas em Bruxelas. A OMS juntou-se ao coro, apelando à Europa para não cair num “catastrófico” “nacionalismo das vacinas”, fechando as portas à vacinação dos outros, sobretudo daqueles que dispõem de muito menos meios. Até à data e apesar da COVAX, a União ainda não enviou uma única vacina para esses países. Fala agora em começar a exportar gratuitamente ou ao preço de custo no final deste ano. Entretanto, China, Rússia e a própria Índia fazem da vacina uma nova arma geopolítica, procurando ser os primeiros a chegar aos países que não possuem nem a tecnologia nem o dinheiro para adquiri-las.

2. A presidente da Comissão, que fez da vacina a sua imagem de marca e que tinha trabalho para apresentar, delapidou desnecessariamente o crédito acumulado, ao não reconhecer os erros e ao responder às criticas com ataques a terceiros em todas as direcções. Contou com o apoio dos principais líderes europeus, a começar por Merkel e Macron, que validaram totalmente a sua estratégia – antes e agora. Nos seus encontros com os jornalistas nos últimos dias, Von der Leyen lembrou que a Comissão reservou 2,3 mil milhões de doses junto de seis laboratórios (Moderna, Pfizer-BioNTech, AstraZeneca, Johnson&Johnson, CureVac e Sanofi). Voltou a felicitar-se por ter obtido melhores condições que o Reino Unido e Estados Unidos nos preços e na responsabilização dos laboratórios no caso de vir a haver problemas. Confirmou que o objectivo é ter 70% da população europeia vacinada no fim do Verão. Apenas admitiu um erro: a Comissão não teve em conta tanto quanto devia as eventuais dificuldades de produção, transmitindo aos europeus uma ideia de facilidade que não existia. Ou seja, para a Comissão o problema não é de estratégia, é de comunicação.

Mas a presidente da Comissão foi mais longe, chegando a pôr em causa a fiabilidade da agência britânica que valida os medicamentos, em comparação com o rigor da agência europeia. Quase em simultâneo com o último encontro da presidente da Comissão com os jornalistas, o seu vice-presidente e chefe da diplomacia europeia, Josep Borrell, dizia em Moscovo que a União esperava que a EMA validasse rapidamente a vacina russa. Este foi apenas um dos “pontos altos” do total desastre diplomático a que assistimos quase de boca aberta, protagonizado por Borrell em Moscovo, numa visita que coincidiu com a condenação de Alexei Navalny em tribunal e à repressão violenta sobre os seus milhões de apoiantes. No mesmo dia em que Borrell manifestava a sua boa vontade para dialogar com a Rússia ao lado de um nada diplomático Lavrov, Moscovo expulsava três diplomatas europeus (da Alemanha, Suécia e Polónia) por alegadamente estarem a interferir no caso Navalny.

Em que ficamos? Os britânicos desleixam a qualidade das vacinas que administram aos seus cidadãos, mas a União faz fé na qualidade da vacina russa Sputnik V, transformada em tábua de salvação para a escassez das vacinas?

3. A questão não é que a Rússia não possa ter a capacidade científica de produzir uma vacina. A questão é sobre a transparência do processo e a credibilidade de um regime político em que as instituições não têm autonomia própria, fazendo o que o Governo lhes manda. Entretanto, apesar de a EMA ter validado a vacina de Oxford sem limitações (tal como a agência britânica), vários governos europeus decidiram que não era adequada a pessoas com mais de 65 anos ou mesmo 55, alegando não ter havido testes suficientes nessa faixa etária. A questão até podia ser legítima, não fora a EMA aceitar a vacina sem ressalvas e os britânicos estarem a usá-la desde meados de Dezembro, até agora sem qualquer problema. Os últimos estudos feitos em Oxford demonstram que ela é efectiva para algumas das novas variantes, o que é uma excelente notícia. Tem ainda duas outras vantagens, do ponto de vista do mundo que não é rico: o seu preço é muito mais baixo do que o das outras que já estão no mercado e a sua armazenagem muito mais simples.

Esta tentativa de Bruxelas de querer fazer do país da Europa com o maior desenvolvimento científico um país sem credibilidade só porque saiu da União é, no mínimo, ridícula. Oxford continua a ser Oxford, com ou sem “Brexit”, com ou sem Boris Johnson. E o resto também. Ontem, 90% dos britânicos maiores de 75 anos já estavam vacinados.

Na sua última entrevista a jornais europeus, Von der Leyen encontrou uma fórmula para explicar a maior rapidez britânica no processo de vacinação: a União é “um tanque”, os britânicos são “uma lancha rápida”. No fim, o tanque é a arma mais poderosa. Ainda é cedo para saber como vai acabar esta corrida pela vacinação. Mas, manifestamente, a presidente da Comissão desconhece o que aconteceu à Invencível Armada.

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