Não será impossível, mas pensa-se que as superfícies não sejam uma forma comum de transmissão do SARS-CoV-2

Cientistas aconselham que se faça mais investigação epidemiológica sobre os padrões de transmissão do coronavírus SARS-CoV-2.

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Nelson Garrido

Continuamos a limpar muito as superfícies por causa da transmissão do coronavírus SARS-CoV-2, como a própria Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda. Mas qual é mesmo o papel das superfícies na disseminação do vírus? Embora possa ter algum impacto, cientistas têm vindo a sugerir que não seja uma forma comum de propagação do vírus. Este coronavírus será transmitido sobretudo pelo ar, quer por gotículas maiores ou por outras mais pequenas (os aerossóis).

O que diz a OMS e os CDC

Nas suas últimas actualizações sobre a forma como o vírus se transmite, a OMS refere que se “pode ficar infectado ao tocar numa superfície contaminada e se depois se mexer nos olhos, nariz e boca antes de se lavar as mãos”. Por isso, recomenda que se desinfectem as superfícies que são tocadas com muita frequência. “Evite tocar em superfícies, sobretudo em espaços públicos, porque alguém com covid-19 poderá ter aí tocado antes. Limpe as superfícies regularmente com os desinfectantes aconselhados”, lê-se no site da organização.

Um porta-voz da OMS disse mesmo ao site da revista Nature que “há provas limitadas da transmissão através de fómites [objectos ou materiais que podem alojar um agente infeccioso e permitir a sua transmissão]. Mesmo assim, a transmissão através de fómites é considerada uma forma de transmissão possível”, devido à identificação de ARN (material genético) do SARS-CoV-2 nas proximidades de pessoas infectadas.

Já os Centros de Controlo e Prevenção de Doenças (CDC) dos Estados Unidos referem no seu site que “não se pensa que [a propagação através das superfícies] seja uma forma comum de a covid-19 se espalhar”. Mas avisam que gotículas respiratórias podem cair em superfícies e que as pessoas aí tocar. Dessa forma, pode ser importante uma frequente desinfecção de objectos e superfícies que possam ser tocados muitas vezes, aconselham.

Quais as provas em cima da mesa

Em Março de 2020, um estudo mostrava que o SARS-CoV-2 podia perdurar no plástico e no aço inoxidável durante dias. Um outro trabalho divulgado em Abril também sugeria que o vírus permanecia infeccioso em superfícies sólidas, como o plástico, durante seis dias. Já nas notas poderia durar até três dias e nas máscaras cirúrgicas, pelo menos, sete dias. Contudo, Emanuel Goldman (microbiólogo da Escola de Medicina Rutgers de New Jersey, nos EUA) explicou à Nature que o facto de o vírus sobreviver não significa que as pessoas o contraiam em superfícies como corrimãos. Além disso, referiu que muitos desses estudos não testaram essa sobrevivência fora do laboratório.

Noutras investigações identificou-se ARN viral em superfícies de instalações médicas, objectos pessoais ou em garrafas de água. Estudos iniciais sugeriam que essa contaminação poderia perdurar semanas. Emanuel Goldman voltou a sublinhar que a contaminação com ARN não é necessariamente razão para alarmismos. “O ARN viral é o equivalente ao cadáver do vírus. Não é infeccioso”, indicou. Aliás, uma investigação de uma equipa do Hospital Universitário Assuta Ashdod em Israel mostrou que em metade das amostras de objectos de hospitais que estudou tinham ARN viral, bem como um terço das amostras de quartos de hotel onde pessoas fizeram a sua quarentena. Mas também se viu que esse ARN viral não era capaz de infectar as células.

Depois de investigar melhor esta questão, o próprio Emanuel Goldman escreveu em Julho um comentário para a revista The Lancet Infectious Diseases referindo que as superfícies apresentavam um risco relativamente pequeno de transmissão do coronavírus. “Na minha opinião, a possibilidade de transmissão através de superfícies inanimadas é muito pequena, e apenas em circunstâncias em que uma pessoa infectada tosse ou espirra para a superfícies e alguém depois toca nessa superfície logo a seguir”, escreveu. “Não discordo com o erro por excesso de cautela, mas isso pode levar a extremos que não são justiçados pelos dados.”

Já em Dezembro, Linsey Marr (investigadora na área da transmissão aérea de doenças no Virginia Tech, nos EUA) assinou um artigo de opinião no jornal The Washington Post em que sugeria que as pessoas abrandassem os seus esforços na limpeza de superfícies – onde se gastam milhões de euros. “Tornou-se claro que a transmissão por inalação de aerossóis é uma importante forma de transmissão, se não a dominante”, disse, citada pela Nature.

O que se deve fazer?

Quanto ao que se deve fazer, os cientistas dizem que é preciso continuar a investigar. Ben Cowling (epidemiologista da Universidade de Hong Kong) exemplificou à Nature que é preciso rastrear bem quem infecta quem e quais as superfícies que podem estar presentes no momento da transmissão. “O que seria mesmo de valor era fazer mais investigação epidemiológica sobre os padrões de transmissão, seja em residências ou locais de trabalho. Não acho que tenhamos feito o suficiente quanto a isso”, recomendou. Ben Cowling também avisou que, só por não se ter concluído que as superfícies tenham um papel de destaque no SARS-CoV-2, não quer dizer que o vírus aí não possa ser contagioso em algum momento.

Já numa audição com outros especialistas em saúde pública na Comissão Eventual para o Acompanhamento da Aplicação das Medidas de Resposta à Pandemia, Henrique Barros (presidente do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto) também considerou que se deve compreender melhor os mecanismos de transmissão da infecção e da doença. “É essencial perceber o que se está a passar”, disse. Mas, ao contrário dos investigadores ouvidos pela Nature, referiu que as superfícies têm sido esquecidas: “Sabemos que não há infecção sem pessoas que transmitam, acreditamos que se tem posto demasiado ênfase na transmissão de pessoa a pessoas por via aérea, esquecendo o papel das superfícies e é preciso rever esta posição porque parte do insucesso também pode estar por aí.”

Num editorial da Nature, chama-se mesmo a atenção que, apesar do que os cientistas têm vindo a concluir, agências de saúde pública continuam a destacar que as superfícies são uma ameaça e devem ser desinfectadas frequentemente. “O resultado é uma mensagem pública confusa”, considera-se. Por isso, o editorial alerta que são necessárias orientações mais claras.

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