Um país a precisar de “cuidados intensivos”

Se os Presidentes forem mais exigentes e críticos, os governos actuam melhor. A distância crítica do Presidente é do interesse nacional.

1. Não há como iludir, não há como enganar, não há como fazer de conta. Este é o pior momento da vida portuguesa – o mais grave, o mais duro, o mais difícil – desde a revolução de 25 de Abril de 1974 ou, pelo menos, desde a entrada em vigor da Constituição. O momento nacional é aflitivo. Há mais de uma semana morrem mais de 250 portugueses por dia devido à pandemia. Morrem muitos outros, também em claro excesso, por causas não identificadas, que são resultado indirecto da pandemia. Os hospitais estão sobrelotados, em profundo esforço, resistindo para lá de todos os limites. Os médicos e os cientistas fazem há meses apelos diários, que se tornaram lancinantes nas últimas semanas.

Sem que ninguém perceba como é possível, os lares de idosos continuam a ser foco de surtos um pouco por todo o país. A grande massa dos cidadãos oscila entre o medo e o cansaço. Velhos e jovens sofrem o drama do confinamento. Os mais velhos temendo a doença e a morte, lamentando a perda ou o congelamento dos seus últimos anos de vida. Os mais novos são largamente privados do convívio e do contacto físico, das aprendizagens escolares até aos tempos de lazer. No meio, ficam as gerações de média idade, que não deixarão de pagar em saúde mental a factura pesada das privações, dos lutos, das perdas económicas.

A actividade comercial, já muito afectada e a funcionar com restrições, está basicamente parada, com excepção dos sectores de bens e serviços essenciais. O turismo, a hotelaria e a restauração sucumbiram forçadamente à pandemia. A contracção económica é evidente. O número de sem-abrigo nas cidades aumenta diariamente e é visível a olho nu. Os desempregados e os inactivos proliferam. As escolas tiveram de interromper a sua actividade. Apesar do enorme tempo de preparação para os cenários de agravamento da situação e das promessas estivais de uma revolução digital na escola, o Governo não tinha nenhum plano de contingência, nenhuma solução alternativa. O mesmo vale para os tribunais e o sector da justiça, onde, mais uma vez, ninguém ousou pensar em planos de contingência para confinamentos parciais ou totais de segundas ou terceiras vagas. No mundo dos tribunais, reina a balbúrdia e a confusão, sem que ninguém saiba exactamente que processos e que prazos estão suspensos; que diligências podem ter lugar; quais as que podem fazer-se física ou digitalmente.

Esta generalizada falta de planeamento e preparação, em todas as áreas da governação, aumenta enormemente a ansiedade e o temor dos cidadãos. A tudo isto acresce a óbvia improvisação em matéria de estratégia de vacinação. O modo como se deixou para trás os maiores de 80 anos que não residem em lares ou os profissionais de saúde do sector privado era inexplicável. A pressão da opinião pública e das instituições europeias forçou mudanças nas prioridades, mas com custos no plano da confiança e a nível operacional. O florescimento de casos de oportunismo e abuso ilustra também as falhas de organização e de transparência da estratégia de vacinação. A andar assim, ainda terminamos no já proverbial “salve-se quem puder”.

2. Muito mais se poderia dizer, mas o ponto é um só e só este: vivemos uma crise sem paralelo. O Governo, designadamente por uma absoluta incapacidade de previsão, planeamento e preparação, não está à altura da gravidade das circunstâncias. Diante de críticas justas e pertinentes, as mais das vezes feitas com intuito construtivo, o Governo responde à moda venezuelana, apelidando os críticos de “criminosos” ou de “conspiradores”. Perante um quadro deste calibre, no sistema constitucional e político português, avulta uma instituição: a instituição presidencial. Não é decerto por acaso que a Constituição entrega directamente o poder de decretar o estado de emergência ou o estado de sítio ao Presidente da República. Sublinho: entrega-o ao chefe de Estado, não o comete ao Governo. Registe-se, aliás, para demonstrar a singularidade e a dimensão sem precedentes da crise – também no plano político e institucional – que nunca se havia decretado o estado de excepção desde 1976. Agora, de uma assentada, e sem lhe ver o fim à vista, já lá vão dez declarações de estado de emergência. É este, juntamente com o poder de dissolução do Parlamento (a dita “bomba atómica”), o poder mais importante do Presidente. E, na intenção original da Constituição, era um poder que punha mesmo o Presidente ao leme das operações. Depois disso, por via de emenda constitucional, promoveu-se a confusão na divisão de competências e responsabilidades.

3. Mas com melhor ou pior texto, com melhor ou pior interpretação, a constituição não é só texto. Em tempos de crise, o Presidente tem um papel activo e insubstituível. Quando o Governo dá sinais ostensivos de falhar e de sucumbir, seja por incompetência, seja por desgaste, o Presidente não pode estar inerte. A melhor forma de cooperar com o Governo, de o obrigar a dar respostas, é manter a distância institucional e ser exigente com ele. Mesmo em tempos de crise, a exigência e a vigilância activa do Presidente favorecem e estimulam um melhor desempenho do executivo.

Ao Presidente pede-se seguramente solidariedade e até lealdade institucional; mas também se pede que guarde distâncias e que se assuma como a reserva última do sistema político. Para isso, não deve tomar como suas culpas que não tem; não deve caucionar toda a decisão ou omissão do executivo; não deve aceitar aparecer como “fundido” com ele. A legitimidade do Presidente é própria e é directa, justamente para não se confundir com a do Governo, que é parlamentar e indirecta. Escrevi-o, também neste espaço, louvando Soares e criticando as doutrinas de Sampaio e de Cavaco, que julgando que ajudavam os governos da época, estavam a premiar a sua inércia e a sua insensibilidade à crítica. Se os Presidentes forem mais exigentes e críticos, os governos actuam melhor. A distância crítica do Presidente é do interesse nacional.

Sim e Não

SIM Governos austríaco e alemão. Ao se disponibilizarem para ajudar Portugal e os portugueses a enfrentar as terríveis consequências da pandemia, dão um exemplo do que deve ser e é a solidariedade europeia. 

NÃO Assembleia da República. A legalização da eutanásia é um retrocesso civilizacional perigoso. Mas pense-se o que se pensar, não podia haver pior contexto para fazer aprovar uma lei com este conteúdo e intuito.

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