Pelo menos um terço dos cientistas tem sintomas de burnout

Níveis de exaustão elevados afectam os investigadores, segundo um estudo de Ana Ferreira, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Há 171 cientistas que aceitam trabalhar sem receber qualquer remuneração.

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Gonçalo Dias

Níveis de exaustão elevados, dúvidas quanto à relevância do seu trabalho e baixa eficácia profissional. Estes são três indicadores clássicos de burnout, ou stress profissional, e estão a afectar uma boa parte dos investigadores nacionais, em particular aqueles que não estão integrados nas carreiras académica ou científica. Pelo menos um terço dos cientistas apresenta estes sintomas, de acordo com um estudo coordenado pela investigadora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH) da Universidade Nova de Lisboa Ana Ferreira, que é apresentado esta terça-feira.

Esta investigação foi pedida pela Federação Nacional de Professores (Fenprof) – de que a autora é também dirigente – em 2019 e tem por base um inquérito online feito entre o final desse ano e o início de 2020, que teve 2726 respostas válidas. Os dados recolhidos revelam que um terço dos investigadores com contrato a termo certo apresenta níveis de exaustão emocional elevados.

Estes cientistas “sentem-se muito fatigados no final do dia de trabalho, emocionalmente exaustos”, explica Ana Ferreira. Além dos dados quantitativos, esta investigação recolheu também dados qualitativos, que permitiram perceber o estado de espírito dos investigadores nacionais.

Os inquiridos revelam também “dúvidas acerca da relevância do seu trabalho”, nota a autora. Quase dois terços (64%) mostram-se consideravelmente ou muito cépticos em relação ao seu desempenho profissional. Além disso, um quarto dos investigadores afirma sentir que é pouco eficaz no dia-a-dia laboral.

Esta análise tem por base a escala de Maslach (Maslach Burnout Inventory), um instrumento que foi pioneiro na avaliação do stress profissional na década de 1980 e que continua a ser um dos mais usados para avaliar situações de burnout. Os indicadores recolhidos são ainda mais negativos quando são analisados os doutorados com contrato de bolsa. Neste subgrupo, 43% dos inquiridos apresenta níveis elevados de exaustão e 31% sente ter baixa eficácia profissional.

A grande maioria destes cientistas tem horários de mais de 40 horas semanais. Segundo o estudo de Ana Ferreira, 64% dos investigadores com contratos a termo e 66% dos bolseiros trabalham mais do que a jornada laboral definida na lei para os trabalhadores do sector privado. Dentro destes grupos, há mesmo uma percentagem elevada de pessoas que trabalha mais de 50 horas por semana – 17% dos têm contrato a termo e 11% dos que recebem bolsa de investigação.

No entanto, afirma a investigadora da FCSH, “não é o número de horas que pesa” sobre os seus colegas. O que os desgasta são “as questões relacionadas com o próprio vínculo como as oportunidades de progressão, a segurança no emprego ou a procura de um vínculo institucional”. Nos discursos dos cientistas que participaram no estudo, é comum a “reprodução de uma ideia de ‘paixão pela ciência’, apresentada como justificação para a manutenção” das situações de precariedade, acrescenta Ana Ferreira.

Há 171 sem salário

O estudo da investigadora da FCSH para a Fenprof centra-se especificamente nos cientistas com relações laborais precárias. Por isso, os 153 trabalhadores com vínculo permanente que responderam ao inquérito não são considerados na análise. Foram ainda encontrados 171 cientistas a trabalhar sem qualquer remuneração. São pessoas que aceitam fazê-lo na esperança de “melhor o currículo” ou enquanto aguardam a abertura ou a publicação de resultados dos concursos em que podem garantir financiamento para os seus projectos.

As conclusões – que são apresentadas na manhã desta terça-feira, numa sessão online promovida pela Fenprof – estão muito centradas na precariedade laboral dos cientistas. O fenómeno tem efeitos não apenas no nível de stress profissional apresentado, como na própria qualidade do trabalho científico, defende Ana Ferreira.

Estes investigadores mostram sentir-se impelidos a ter “práticas orientadas para o imediato, como projectos mais curtos, que produzam rapidamente resultados”, defende. Um dos inquiridos, citado nas conclusões a que o PÚBLICO teve acesso, aponta “limitações no desenvolvimento projectos mais inovadores que requerem tempo e maturação de ideias” e “pressão de publicar, que reduz qualidade científica”, como efeitos da instabilidade contratual vivida.

O combate à precariedade na investigação foi uma das bandeiras do ministro Manuel Heitor, com a criação do programa de Estímulo ao Emprego Científico, que “garantiu uma melhoria das condições laborais dos doutorados, com acesso a um conjunto de direitos que não tinham, nomeadamente subsídio de desemprego”, valoriza Ana Ferreira. Mas que “operou uma integração muitíssimo limitada nas carreiras” (docente e de investigação científica).

Dos mais de 7500 doutorados contratados nos últimos anos ao abrigo do Estímulo ao Emprego Científico, bem como do programa de regularização extraordinária dos vínculos precários na Administração Pública, só 5,1% foram integrados na carreira docente, aponta Ana Ferreira com base nos dados mais recentes do Observatório do Emprego Científico, que remontam a Outubro. A estes juntam-se 2,9% que entraram na carreira de investigação científica.

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