Sem rumo, a vacinação vai tardar até aliviar o calvário dos brasileiros

O Brasil tem uma larga experiência em campanhas de vacinação, mas a falta de doses, de coordenação e de uma mensagem clara estão a prejudicar o processo.

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Só muito recentemente é que Bolsonaro começou a dar importância à vacinação ADRIANO MACHADO / Reuters

Depois de muitos avanços e recuos, a primeira vacina contra a covid-19 no Brasil foi aplicada há pouco mais de uma semana, envolvida num intenso combate político. Num país de dimensões continentais seria sempre um desafio monumental montar uma operação de vacinação em contexto de progressão de uma pandemia responsável por 220 mil mortes, mas a falta de planeamento e de apoio público do Governo federal deixam os especialistas extremamente apreensivos.

A vacina começou a ser aplicada há pouco tempo, mas a sua curta história já deu origem a vários episódios e polémicas que apenas têm contribuído para adiar o processo de imunização. O grande objectivo, como noutros países, é vacinar 70% da população adulta, que no Brasil corresponde a cerca de 150 milhões de pessoas. Num cenário de corrida global às vacinas, o país ficou para trás, tendo fechado apenas um contrato com a AstraZeneca que comercializa a vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford – depois de recusar, o Brasil acabou por se juntar à iniciativa COVAX, da Organização Mundial de Saúde (OMS).

O Governo federal encontra-se em negociações com outros fabricantes, como a Moderna, Janssen e Bharat Biotech, bem como o Instituto Gamalya, que desenvolveu a vacina russa Sputnik V, mas ainda não houve progressos. Este mês, foi rejeitada uma proposta feita pela Pfizer para vender 70 milhões de doses.

Adquirir vacinas apenas de um fabricante “foi uma aposta arriscada”, diz ao PÚBLICO a especialista em epidemiologia, Ethel Maciel.

Vários meses antes, o governo do estado de São Paulo decidiu avançar por conta própria para negociações com o laboratório chinês Sinovac e conseguiu assegurar um protocolo para desenvolver a vacina contra a covid-19 conhecida como Coronavac pelo Instituto Butantan.

Até agora, são estas duas vacinas que estão à disposição dos brasileiros para a primeira fase de vacinação, sendo que apenas seis milhões de doses da Coronavac começaram a ser distribuídas – o suficiente para imunizar três milhões de pessoas com duas doses. O valor está muito abaixo do mínimo necessário para que haja progresso entre os grupos prioritários. Até esta quinta-feira, tinham sido vacinadas mais de 1,2 milhões de pessoas.

Experiência acumulada

Poucos países vacinam anualmente mais gente que o Brasil, que conta com 15 vacinas para crianças no boletim. A longa experiência tornou a vacinação uma máquina bem oleada que facilmente consegue alcançar populações que se dividem entre metrópoles como São Paulo e pequenas aldeias indígenas de difícil acesso. Carla Domingues, que esteve à frente do Programa Nacional de Imunizações (PNI) entre 2011 e 2019, é uma profunda conhecedora deste sistema e não hesita em qualificar a vacinação contra a covid-19 como o maior desafio nas quase cinco décadas do programa.

“Com a vacina disponível, o Brasil consegue vacinar em dois ou três meses 80 milhões de brasileiros”, diz Domingues, em entrevista ao PÚBLICO. Porém, há inúmeras particularidades que tornam a campanha contra a covid-19 extremamente complexa. “O Brasil está acostumado a ter muitas vacinas ao mesmo tempo e a fazer campanhas de massa muito rapidamente. Desta vez terá que fazer uma campanha muito longa para vacinar a maioria da população adulta”, explica a investigadora. Acresce ainda a administração de duas doses, com prazos definidos e variáveis entre cada tipo de vacina.

O Governo federal definiu como grupos prioritários os profissionais de saúde, idosos com 75 anos ou mais, ou a partir dos 60 anos se estiverem institucionalizados, indígenas, quilombolas (comunidades de descendentes de escravos), e povos ribeirinhos (que vivem nas margens de grandes rios seguindo um estilo de vida tradicional). Estima-se que sejam necessários 30 milhões de doses só para imunizar este grupo.

O problema é que não existe um cronograma para o processo de vacinação e, diz Ethel Maciel, o Governo não definiu sequer quem irá integrar as restantes etapas até que a imunidade de grupo seja completa. “O que está definido é um grupo ainda muito pequeno, não chega sequer a metade do que é necessário”, diz a professora da Universidade Federal do Espírito Santo, que foi uma observadora privilegiada do caos que reina no Governo brasileiro na preparação da campanha vacinação.

Maciel integrou durante vários meses um grupo de especialistas que aconselhou o Ministério da Saúde na definição do Plano Nacional de Imunização para a covid-19 e relata uma relação “muito difícil” com o Governo, que só muito recentemente começou a dar prioridade às vacinas. Um dos primeiros problemas com que se deparou foi a insistência do ministério em elaborar um plano de vacinação que contemplasse apenas as vacinas que estavam garantidas, ou seja, o contrário do que é comum fazer-se. “No nosso entendimento, o plano nacional de vacinação contra a covid-19 teria de incluir todas as pessoas que precisam de ser vacinadas, independentemente do número de doses disponíveis”, explica.

A especialista em Saúde Pública era uma das responsáveis por definir os critérios dos grupos prioritários, um tema sensível e altamente propenso a pressões políticas. A inclusão dos condutores de camiões – uma categoria com forte capacidade reivindicativa e que é composta por acérrimos apoiantes do Presidente Jair Bolsonaro – entre os grupos prioritários foi decidida sem o aval dos especialistas, por exemplo.

Um dos momentos mais tensos na relação entre os peritos e o Governo foi a apresentação da primeira versão do Plano Nacional de Imunizações, depois de uma intimação pelo Supremo Tribunal Federal, em que os nomes dos especialistas foram incluídos sem consulta prévia. “Houve uma quebra de confiança muito importante”, diz Ethel Maciel.

Porém, o “ponto de ruptura”, explica a professora, foi a recusa do Ministério da Saúde em incluir a população prisional nos grupos prioritários “sem critério científico nenhum” e apenas por “pressão dos grupos apoiantes” do Governo – o ministério acabou por incluí-los. Desde 16 de Dezembro que o grupo de aconselhamento deixou de reunir com os responsáveis governamentais.

Interferência presidencial

Depois de meses de desinteresse, Bolsonaro começou finalmente a dar prioridade à vacinação. Ainda esta semana, o Presidente brasileiro, que publicamente disse não pretender ser vacinado, assegurou que o processo vai ser acelerado “para dar mais conforto à população”.

No entanto, os especialistas continuam preocupados com a falta de empenho do Governo federal, contrastando com a imagem que governantes em todo o mundo pretendem dar para combater os receios da população em ser vacinada. O contexto é de elevada incerteza perante os riscos de uma vacina desenvolvida em tempo recorde e está a ser terreno fértil para a circulação de informação falsa.

O problema é quando o chefe de Estado também as promove. Durante meses, Bolsonaro foi emitindo dúvidas sobre o desenvolvimento das vacinas, sobretudo da Coronavac, que apelidou de “vachina”, no braço-de-ferro que foi mantendo com o governador de São Paulo, João Doria, que ambiciona sucedê-lo em 2022.

“É uma mensagem conflituosa que pode interferir na adesão das pessoas que acreditam no Governo”, diz Carla Domingues. A antiga coordenadora do PNI lembra que “o que fortaleceu [a vacinação] ao longo de quase cinco décadas foi justamente haver um consenso no Brasil de todas as lideranças políticas e científicas, formadores de opinião, a favor das vacinas, estimulando a população”.

Sem mensagem institucional, cabe à sociedade civil preencher as lacunas e, no Brasil, isso tem um estilo muito próprio, como ficou patente com a adaptação de uma célebre música funk a um apelo à vacinação, que em poucos dias foi visto por milhões de pessoas e se tornou num hino não-oficial da campanha.

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