Coronavírus: a “verdadeira tragédia” que pode acontecer nas prisões do Brasil

A cultura punitiva do Brasil, onde “bandido bom é bandido morto”, deixou o sistema prisional em sobrelotação crónica. Nas cadeias, a higiene é mínima e o coronavírus poderá espalhar-se sem controlo.

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As prisões no Brasil estão sobrelotadas e os motins são frequentes Bruno Domingos/Reuters

Há poucos lugares mais perigosos para se estar durante uma pandemia altamente contagiosa como a do novo coronavírus do que numa prisão sobrelotada. No Brasil, onde este problema tem décadas e só se tem agravado nos últimos anos, as medidas adoptadas visam sobretudo restringir as entradas e saídas, mas os especialistas avisam que é necessária uma abordagem mais radical.

Imagine-se por um momento uma cela de quatro metros quadrados, praticamente sem luz natural nem circulação de ar, ocupada por duas dezenas de pessoas. É impossível que todos se deitem ao mesmo tempo para dormir. Alguns são amarrados às grades para não caírem durante o sono, “pendurados como se fossem morcegos”, descreve o presidente do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), Hugo Leonardo, numa entrevista ao PÚBLICO por telefone.

Esta é a realidade da sobrelotação em muitas prisões no Brasil. A isto, acrescenta Leonardo, juntam-se as “péssimas” condições sanitárias. “Existem doenças rudimentares que atacam os presos, como tuberculose, sarna. Existem ratazanas dentro dos cárceres, percevejos, bichos que atacam animais nas matas”, afirma o advogado.

Neste contexto, um vírus com uma taxa de contágio tão elevada como o coronavírus tem um potencial devastador. Leonardo fala de uma “verdadeira tragédia” que se avizinha. O advogado conhece prisões no Brasil inteiro e usa um caso recente numa cadeia na região Norte onde se registou um surto de sarna, uma doença de pele com um nível de contágio bastante inferior à da covid-19. Mesmo assim, todos os presos daquele estabelecimento contraíram a doença, o que o leva a antecipar o pior cenário.

“Se pensarmos numa doença contagiosa de forma viral, num ambiente que não tem circulação de ar e luz, devo pensar que toda a população carcerária será infectada por esse vírus”, afirma o presidente do IDDD. Há já quatro casos suspeitos no Rio de Janeiro.

Há mais de 752 mil pessoas presas no Brasil, de acordo com os últimos dados do Departamento Penitenciário Nacional, o que faz do país o terceiro com a população carcerária mais elevada a nível mundial, apenas superado pelos EUA e pela China. Mas destes, quase 250 mil são presos provisórios, ou seja, pessoas que ainda aguardam sentença, embora já estejam a cumprir a pena num regime fechado, e por vezes durante vários anos. É raro um estabelecimento prisional não ter uma ocupação acima da sua capacidade máxima e, em certos casos, albergam o dobro dos presos que deveriam.

“Barril de pólvora”

Até agora, as medidas para conter a propagação do coronavírus nas prisões brasileiras têm privilegiado a suspensão das visitas de familiares e advogados e das saídas periódicas a que parte dos presos tem direito. Para Hugo Leonardo, este tipo de abordagem limita-se a “aumentar a punição e não evita de forma nenhuma o contágio”.

Para o IDDD, a chave para evitar a contaminação está na diminuição da sobrelotação. O instituto recomendou a libertação de um certo número de detidos que possam cumprir a pena de outra forma que não o encarceramento. Trata-se de “pessoas que cometeram crimes sem violência ou grave ameaça e que cometeram delitos menores, que poderiam ser repreendidas com outras medidas”, como a pulseira electrónica ou o trabalho comunitário, explica Leonardo.

Para o coordenador de projectos do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), David Marques, as medidas restritivas das visitas “são necessárias”. “Se olharmos para o perfil socioeconómico dos presos é fácil entender que se o vírus contactar com a população geral ele vai espalhar-se muito rapidamente sem condição de tratamento”, observa o especialista contactado pelo PÚBLICO.

Porém, a questão das visitas familiares é extremamente sensível nas prisões. As restrições “tornam o sistema prisional num barril de pólvora”, alerta o membro do FBSP, que aconselha um profundo trabalho de comunicação com os detidos e as famílias no sentido de os sensibilizar para o problema da propagação do vírus.

No início da semana, cerca de 1500 presos de quatro unidades prisionais no interior de São Paulo fugiram na sequência de motins motivados pela suspensão das saídas temporárias a que teriam direito na época da Páscoa. Mais de 500 foram detidos nas horas seguintes, mas a maior rebelião coordenada nas prisões em mais de uma década serviu como alerta para a tensão acumulada.

“Já existe uma situação carcerária de descumprimento do Estado de Direito em relação a estas pessoas e, quando se espera que o Estado venha com uma política importante e eficaz, o que sobra é mais punição e restrição de direitos”, afirma Hugo Leonardo, prevendo que “o ambiente prisional ficará inadministrável”.

Governos estaduais parecem insistir numa ilusão de que a simples restrição de visitas e de saídas temporárias irá isolar de alguma forma os quase 800 mil potenciais focos de infecção. Leonardo lembra, contudo, que “há um fluxo de gente altíssimo nas penitenciárias”, como, por exemplo, os milhares de guardas prisionais e outros trabalhadores que regressam às suas casas diariamente. “É impossível isolar toda essa população, a não ser que se tranque a porta e deixa todos morrerem à míngua.”

Apesar de sublinhar a importância da suspensão das visitas, David Marques defende que também se insista na diminuição da sobrelotação das cadeias. O Conselho Nacional de Justiça, um órgão que visa “aperfeiçoar o trabalho do sistema judiciário, emitiu uma série de recomendações para tentar conter a propagação do coronavírus nas prisões. Entre elas está a “revisão das prisões provisórias por todos os juízes do país” para determinar absolvições ou quais os casos que podem progredir para regimes de penas fora das prisões.

O especialista do FBSP considera esta recomendação “mais interessante” e passível de gerar “menos atrito social” do que a libertação imediata de presos sugerida pelo IDDD. “Uma situação que já era complicada por causa do vírus passa a ter um ingrediente adicional, com as pessoas a achar que o crime vai ficar descontrolado, que o Estado não vai ter condição de fornecer a segurança”, afirma David Marques.

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