Dos neutros não reza a espada

O mundo que se conta a partir do que se diz.

“Não estou a pedir para ser registado como árabe ou outra coisa qualquer. O meu pedido diz: vocês redefiniram o sentido do colectivo. Eu não sou parte do colectivo segundo essa definição. Apaguem-me.” Avraham Burg, líder da Agência Judaica

Não ser judeu como identidade

Avraham Burg é um nome conhecido da esquerda israelita. O líder da Agência Judaica, a maior organização judaica sem fins lucrativos do mundo, antigo presidente do Knesset (o Parlamento israelita) e que serviu como Presidente interino de Israel, pretende deixar de ser considerado judeu no registo populacional oficial do Ministério do Interior. Opositor da Lei Básica: Israel - Estado-Nação do Povo Judeu, aprovada em 2018, Avram, como é conhecido, diz ao Haaretz que já não se sente “identificado com este colectivo” e, por isso, não considera que o passo que dá seja “extremo”, antes pelo contrário, “é o necessário e lógico”. Porque esta lei implica uma mudança na sua “definição existencial”. Desde que começou na política, explica, defende dois princípios: a separação entre Estado e religião e o fim da ocupação dos territórios palestinianos. “Passaram-se décadas desde então e eu ainda quero a separação entre religião e Estado e o fim da ocupação. Eu não mudei – vocês é que mudaram. Ficaram mais de extrema-direita, nacionalistas, fundamentalistas.” Há duas semanas, o Supremo Tribunal israelita decidiu analisar as numerosas queixas contra a constitucionalidade da lei, Burg explica que vai esperar pela decisão para avançar com o seu pedido para deixar de ser considerado judeu. “Não estou a pedir nada radical”, adianta este discípulo de Yeshayahu Leibowitz, o famoso académico e intelectual judeu, apenas que não o identifiquem com esse colectivo. Leibowitz, que morreu em 1994, considerava que Israel não se podia considerar uma democracia: “Israel já não é uma democracia desde a Guerra dos Seis Dias. Israel priva dois milhões de pessoas dos seus direitos civis e políticos”. Um quarto de século depois, Avram Burg explica: “Continuarei a viver a minha identidade histórica judaica da mesma maneira que os meus pais e os meus antepassados e antepassadas. Mas isto não.”

Fio da espada no pescoço dos neutros

O músico paraibano Chico César tem passado a pandemia a compor. Quase todos os dias na sua conta de Instagram vai publicando coisas suas a tocar e coisas de outros que interpretam os seus temas. Há uns dias mostrou uma nova canção, chamada Pisadinha. Num comentário elogioso, um seguidor pedia-lhe, no entanto, para “evitar as de cunho político-ideológico” e se abster de escolher lados no panorama dividido da sociedade brasileira. Mas como Chico César não se abstém nunca de intervir, o admirador não ficou sem resposta: “Por favor, todas as minhas canções são de cunho político-ideológico!! Não me peça um absurdo desse, não me peça para silenciar, não me peça para morrer calado”. Como afirma o colunista do UOL Pedro Antunes, o cantor foi “preciso” e “perigosamente afiado”, sem deixar de ser “afável” na resposta contundente que deu: “Respeite, ou saia. Não veja, não escute. Não tente controlar o vento. Não pense que a fúria da luta contra as opressões pode ser controlada. Não sou seu entretenimento, sou o fio da espada da história feito música no pescoço dos racistas. E dos neutros…” Capaz de escrever as letras mais intrincadas de reinvenções e trocadilhos que são em si poética própria, Chico César também se diverte nas letras bem-humoradas de mordaz cunho político e até fez um tema sobre a vacinação onde não deixa de insultar o Presidente Jair Bolsonaro: “Eu vou tomar vacina/ Quem não quiser/ Que tome cloroquina/ Não vou passar vergonha/ Quem não quiser/ Que escute esse pamonha”.

O Presidente-Miss México

Andrés Manuel López Obrador não quis dar os parabéns a Joe Biden quando foi declarado Presidente eleito, quis esperar confirmações. Agora, o Presidente do México, também prefere calar, a desafiar no que seja o vizinho do Norte. Mesmo nas barbas de um atentado à democracia em Washington, AMLO opta pelo escanhoar do silêncio: “Não vamos intervir nestes assuntos que competem aos norte-americanos, essa é a nossa política, isso é o que se pode comentar.” Quando um pouco por todo o mundo, as imagens abalavam os espíritos mais progressistas perante a barbárie de uma turba de fanáticos, na sua maioria homens brancos cultivadores de teorias da conspiração, o dito político de esquerda calou comentários e seguiu caminho. E só para que não lhe chamassem cobarde, sempre acrescentou um comentário humanista, desembainhando um “é sempre muito lamentável que se percam vidas humanas” e um apelo ao “diálogo” que não sabemos a que serve perante uma multidão enfurecida pelas palavras de um chefe de Estado pirómano que ataca o principal edifício da sua democracia. “Pelo resto, não assumimos posição, desejamos sempre que haja paz, prevaleça a democracia que é o poder do povo e que haja liberdades”, concluiu o chefe de Estado mexicano, num comentário que teria agradado de sobremaneira ao júri de um qualquer concurso de beleza.

A sua pátria era o exílio ou a ruína

Na sua morte, da vida que já esquecera por completo devido ao Alzheimer, o poeta Enrique de Rivas Ibáñez quis ser levado com a bandeira que foi sempre a sua – a vermelha, amarela e roxa da II República Espanhola. Filho do exílio dos republicanos espanhóis cuja aventura o generalíssimo Franco massacrou com o seu cinzentismo sanguinário, o sobrinho do Presidente da República Espanhola Manuel Azaña, continuou a ser um espanhol exilado, embora tenha chegado ao México com a família aos dez anos. Nos últimos tempos, quando a doença já não o deixava reter nada do presente, nem fazer sentido ao barulho que lhe chegava pelas janelas do apartamento da Rua Lerma, artéria movimentada da zona de Cuauhtémoc, na Cidade do México – onde viveu também a viúva de Azaña –, o poeta só conhecia de si os anos que iam até aos anos 1950 e incluíam os seus primeiros anos passados na Madrid onde nasceu em 1931. Filho do encenador Cipriano Rivas Cherif, este poliglota que trabalhou para a FAO (Organização para Alimentação e Agricultura das Nações Unidas) escreveu num poema “não sou já o que fui; e se ainda o fosse,/ sombra não mais seria do ausente/ que no meu corpo habitou com luz sofrida/ sabendo que testemunha apenas era.” Fernando Serrano Migallón, também ele descendente de republicanos espanhóis, afirmou ao El País que o poeta sonhava ir-se a viver num castelo em Espanha, herança familiar, “embora alguém dissesse que o castelo não era mais do que ruínas”.

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