Dia 131: Quando os pais deixam de reconhecer os filhos

Os pais precisam de saber que não se resume tudo a “se está bem ou mal-educado”, merecem saber que estas crianças estão em sofrimento e necessitam de ajuda.

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@designer.sandraf

Querida Ana,

Tenho de te fazer uma confissão. Uma confissão boa. Acho que este Natal subi um nível na descoberta do prazer de ser avó. Eu sei que é difícil porque já sou a mais feliz das avós, mas a verdade é que este Natal estive com as mais velhas, serenamente, sem precisar de puxar pela cabeça para inventar um qualquer programa especial ou “actividade” para as entreter. Estivemos juntas, e elas fizeram-me imensa companhia, mas “cada uma na sua”, naquela intimidade confortável que, para dizer a verdade, dificilmente consegui convosco quando eram pequenos, se calhar porque eu própria estava (era) mais agitada. Tão bom.

O mérito é delas, claro, que têm tantos interesses, projectos e visivelmente se sentem bem em casa, mas fiquei a pensar se acontecerá o mesmo com muitas crianças depois destes confinamentos. Talvez a reclusão por decreto tenha aliviado a obrigação que os pais e os avós sentiam de os levar aqui e ali, de inventar actividades lúdicas e pedagógicas para os entreter, e os miúdos conseguiram finalmente a oportunidade de aprender a “ir para fora cá dentro”, usando melhor os seus recursos interiores. Será? Era bom que fosse, porque acho que independentemente de todas as fases por que passem no futuro, o facto de saberem — com conhecimento de causa — que é possível sentirmo-nos bem onde estamos, contentes com a nossa própria companhia, é uma conquista para a vida.

Beijinhos


Querida Mãe,

Sabe quando alguém não vê um dos nossos filhos há algum tempo e quando o vê diz “Oh, meu Deus, está tão alto!” e nós, de repente, olhamos para ele “de fora” e percebemos o quanto realmente cresceu. Foi isso que me aconteceu com a sua carta. O que descreve acontece cada vez mais cá em casa com as mais velhas. Quando os mais novos saem com o pai, eu e elas ficamos “em companhia”, e não comigo a “tomar conta delas.” É uma sensação maravilhosa. Vermos um filme, falarmos de coisas mais profundas, já perceberem tantas piadas, poder estar a gravar uma canção ou a ensaiar ou a escrever sabendo que estão óptimas e serenas a fazer as coisas delas.

É tão engraçado como quando as coisas são difíceis, quando as noites são impossíveis, quando as birras se colam umas às outras, ficamos com a certeza de que nunca vamos sair daquele sítio. Parece que estamos dentro de um buraco escuro sem luz.

Muitas vezes brincamos com as birras mais típicas — a birra no supermercado, ou a de não querer calçar os sapatos —, e brincamos porque na maior parte dos casos estamos perante birras cansativas, mas que sabemos fazerem parte do caminho. Mas há alturas, e há famílias, onde as birras são de um outro nível de conflito. Crianças com neurodivergência, perturbações de ansiedade, depressões, que sofrem bullying, estão num processo de recusa escolar, ou que sofreram algum tipo de trauma, são uma história diferente. Como é diferente o sofrimento de famílias que, muitas vezes, por fora parecem “perfeitas”, mas em que os pais acordam a meio da noite com suores frios só de imaginar o que vão viver na manhã que se aproxima: como vão levar o filho à escola quando ele se esconde pela casa e chora incontrolavelmente, como vão acalmar os gritos e os pontapés quando algo espoletou uma crise, como vão convencer a sair de casa uma filha com Transtorno Obsessivo-Compulsivo e que está em pânico de ser contaminada pela covid-19?

Há, mas essas crianças são uma minoria... Talvez, ou talvez não sejam tão poucas quanto isso, mas a vergonha dos pais, o medo de serem julgados, e o desejo de preservar a privacidade dos filhos, levam a que escondam o que se passa dentro de portas. Mãe, tenho ouvido tantos relatos de pais que durante a pandemia deixaram de reconhecer os seus próprios filhos.

Estes pais precisam de saber que não se resume tudo a “se está bem ou mal-educado”, merecem saber que estas crianças estão em sofrimento e necessitam de ajuda. Precisam de saber que os remédios não são bichos papões e que existem para serem usados, de forma adequada e criteriosa, no equilibrar destas crianças, dando-lhes condições para aprenderem a usar as outras ferramentas essenciais, como são a terapia, a exposição ao que as aflige, a meditação, exercícios de concentração e de relaxamento, etc.. E que, com estas “armas”, a família pode reencontrar a paz com que tão legitimamente sonha.

Por isso, se fico com o coração absolutamente quente sabendo que neste momento os meus filhos estão serenos e em paz, a mãe sabe que nem sempre foi assim e embora nem tudo seja para ser escrito ou dito aqui, gostava que todos os pais soubessem que podem pedir ajuda (ou só desabafar) e que o Birras de Mãe também serve para isso. Sem julgamento.

Beijinhos


No Birras de Mãe, uma avó/ mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, vão diariamente escrever-se, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook e Instagram.

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