“Destribalizar” a América

A tarefa mais importante que Joe Biden tem entre mãos consiste em “destribalizar” os EUA e para isso tem de livrar-se, simultaneamente, de Trump e de Obama.

A música é de amor, não é sobre política. Mas nos dias de hoje as emoções parecem cada vez mais semelhantes. Talvez por isso seja possível retratar o atual momento nos Estados Unidos recorrendo a parte de uma belíssima música dos Guns N'Roses. Diz assim: “É difícil segurar uma vela acesa na chuva fria de novembro”.

Que o diga Joe Biden. Ganhou as eleições presidenciais a 3 de novembro e poucos dias depois foi confrontado com a publicação do primeiro volume das memórias de Barack Obama, que se desdobrou ainda em entrevistas nos principais meios de comunicação social do país. Para já não falar dos avisos de Bernie Sanders, Alexandria Ocasio-Cortez, entre outros, para que os progressistas não sejam calados. E ainda há Kamala Harris. Não é preciso ser um fino político para perceber que está em curso uma luta pelo poder nos democratas e que, se quiser mandar, Biden terá de afirmar a sua liderança no partido, desde logo, mais importante de tudo, rompendo com Obama.

Do outro lado, a coisa não é mais famosa. Donald Trump recusa-se a reconhecer a derrota nas eleições, pois sabe que a América é implacável com os perdedores, e prepara-se para lutar até ao fim pela manutenção do seu poder político, o que passa pelo controlo do Partido Republicano, muito provavelmente a pensar numa recandidatura em 2024. E, entre os run-off de início de janeiro na Georgia e as eleições intercalares de 2022 (com primárias pelo meio), os republicanos parecem capturados por um homem que, até ver, vale mais de 70 milhões de votos e faz quase o pleno nas bases do partido.

Como já escrevi aqui noutro artigo, os EUA estão tribalizados, havendo dois grupos sociais, políticos e identitários claramente distintos, que têm duas visões radicalmente diferentes e irreconciliáveis sobre o país, a sua identidade, o passado e o futuro, considerando-se mutuamente como “um mal”. Donald Trump e Barack Obama partilham a responsabilidade por esta tribalização e são os dois líderes tribais (refira-se que, no caso de Obama, em certa medida não por culpa própria, mas porque uma boa parte da América nunca aceitou ter um presidente negro). A tarefa mais importante que Joe Biden tem entre mãos consiste em “destribalizar a América” e para isso tem de livrar-se, simultaneamente, de Trump e de Obama.

O caminho é estreito e não é nada seguro que resulte, mas há uma direção. Em primeiro lugar, tem de voltar a colocar o Partido Democrata no centro, seja institucionalizando as alas mais radicais, seja acabando com elas.

Em segundo lugar, tem de ajudar a refazer o Partido Republicano, o que implica não só não o hostilizar, como mesmo aceitar uma parte das suas políticas, sobretudo as que se inscrevem no chamado conservadorismo tradicional.

Em terceiro lugar, tem de ser capaz de dar voz e dignidade ao eleitorado que votou em Donald Trump, através do cumprimento de várias das promessas que fez durante a campanha eleitoral, tais como: o “compre americano”, as medidas contra a deslocação de empregos e empresas para o estrangeiro, a redução das desigualdades, o aumento dos rendimentos, a criação de empregos (comprometeu-se a criar dez milhões de novos empregos), a guerra contra a corrupção, os grandes investimentos em infraestruturas (autoestradas, caminhos de ferro, cidades inteligentes, etc.), os apoios maciços à educação. Em quarto lugar, voltando a colocar no centro das prioridades dos democratas as questões socioeconómicas em vez das políticas identitárias.

Não será fácil. Mas a letra dos Guns N'Roses também diz: “Então, não importa a escuridão/Ainda podemos encontrar uma maneira/Porque nada dura para sempre/Mesmo a chuva fria de novembro”. 

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