Ficção e elite vs receita e emprego: partidos com visões opostas sobre a zona franca

Parlamento discutiu o prolongamento do IRC de 5% na Zona Franca da Madeira depois de Bruxelas identificar violação das regras. PS não apoia proposta do PSD e abre espaço a iniciativa do Governo.

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O regime fiscal da Zona Franca permite às empresas um IRC de 5% até 2027 Andreia Gomes Carvalho

O Parlamento debateu nesta quinta-feira uma proposta do PSD para prorrogar o regime fiscal da Zona Franca da Madeira (ZFM) por mais três anos e no centro da discussão pairou do início ao fim a recente decisão da Comissão Europeia (CE), que declarou ilegal a atribuição de benefícios de IRC a empresas que não cumprem os requisitos acordados com Bruxelas há mais de uma década em termos de criação e manutenção de empregos no arquipélago.

Entre a esquerda e a direita surgiram visões diametralmente opostas sobre as vantagens e desvantagens do regime fiscal para a economia regional.

De um lado, o BE, o PCP, os Verdes e o PAN posicionaram-se contra a forma como o instrumento fiscal tem sido utilizado. Ouviram-se mesmo acusações de que o regime é instrumentalizado por uma “elite” e que é um convite à evasão fiscal. Do outro, o PSD, o CDS e a Iniciativa Liberal defenderam as vantagens económicas da manutenção do regime, ainda mais num contexto de pandemia, e insistiram que há postos de trabalho que não podem ser perdidos.

O PS procurou ficar a meio da ponte, defendendo que, para prolongar o regime fiscal actual, prestes a expirar no final de 2020, é preciso alterar as regras actuais para corrigir as ilegalidades encontradas pela Comissão Europeia. Essa corresponde à posição do Governo, que já disse que irá apresentar uma iniciativa para prolongar o regime por um ano (até 31 de Dezembro de 2021, como é permitido por Bruxelas para os auxílios estatais com finalidade regional, como é o caso da ZFM) e ajustando a lei ao que ficou acordado com a Comissão Europeia.

Foi o deputado do PEV José Luís Ferreira quem resumiu o problema identificado pela CE, que detectou que os postos de trabalho fora da Madeira e da União Europeia eram validados para a atribuição de benefícios de IRC como se estivessem no arquipélago, as mesmas pessoas foram contabilizadas como trabalhadores em várias empresas, trabalhadores a tempo parcial foram considerados a tempo inteiro e actividades sem ligação ao arquipélago foram usadas como âncora para aplicar reduções fiscais.

"Borlas"

As acusações mais fortes surgiram pela mão do BE e do PCP.

Contra o prolongamento do regime fiscal, o deputado comunista Duarte Alves citou uma posição antiga do PCP na qual os comunistas defendiam que a ZFM “beneficia apenas uma elite nacional e estrangeira que a utiliza para fugir ao pagamento de impostos”. O deputado disse que, “durante anos”, Bruxelas promoveu o regime agora investigado. E fez a sua avaliação: “Poucos empregos, pouca receita fiscal, pouco ou nenhum investimento realizado na região, para grandes borlas a favor de uma elite financeira que se arroga no direito de não pagar impostos, ao mesmo tempo em que quem vive do seu trabalho e do seu pequeno negócio [na Madeira e no restante território] é obrigado a cumprir com as suas obrigações fiscais”.

"Fraude à lei"

Na mesma linha, a deputada do BE Mariana Mortágua sublinhou que o regime IV “em larga medida reproduz uma parte da estrutura que já vinha do regime III” e disparou contra as regras, considerando que a redução de IRC é dada em troca de uma “ficção”, a de que “existe uma contrapartida em termos de criação de emprego na região autónoma da Madeira ou criação de riqueza” no arquipélago.

A deputada citou três exemplos noticiados pelo PÚBLICO, para sustentar que, na sua opinião, as empresas não foram ali sediadas para criar empregos: referiu a presença da empresária angolana Isabel dos Santos, de Francisca Nguema Jiménez (filha do Presidente da Guiné Equatorial, o ditador Teodoro Obiang), ou de futebolistas (caso de Adriano, ex-jogador do FC Barcelona).

“Há anos que se sabe que os empregos são fictícios”, mas, disse, há “deputados que não querem ver isto”. Para o BE, a questão não se coloca apenas sob o prisma do direito comunitário, mas “de fraude à lei”.

"6000 trabalhadores"

O debate fora aberto pelo PSD, autor da proposta. A deputada Sara Madruga da Costa, eleita pelo círculo da Madeira, salientou que a ZFM é “um instrumento extraordinariamente importante para a Madeira” e para o país, com “6000 trabalhadores de mais de 1600 empresas”, contribuindo para “um quinto da economia regional da Madeira” através de “120 milhões de euros de receita fiscal anual”.

A deputada referiu que a ZFM é fiscalizada pela “União Europeia” - pela Comissão -, mas não referiu que a conclusão desse processo de fiscalização foi justamente a de que Portugal violou as regras de concorrência. 

Quanto à investigação feita pela Comissão Europeia, a deputada defendeu que, por um lado, as interpretações do executivo comunitário “são passíveis de recurso”, embora, por outro, tivesse admitido que “se houver prevaricadores, os mesmos obviamente terão que ser punidos”, sem ser posta em causa um instrumento que diz ser “imprescindível” para a Madeira.

A concorrência

A deputada Cecília Meireles colocou a tónica na concorrência de outros centros financeiros europeus. “Por mais que se diga que estamos a perder muita receita fiscal, se este regime do CINM acabar, Portugal não vai receber nem mais um euro de receita fiscal”. E advertiu: “A esmagadora maioria das empresas que lá estão vão calmamente para as Canárias, vão calmamente para a Holanda ou vão calmamente para o Luxemburgo. E do ponto de vista da receita fiscal, Portugal não só não vai receber nem mais um euro, como vai perder provavelmente estes 120 milhões de euros de receita”.

João Cotrim Figueiredo, da Iniciativa Liberal, defendeu a prorrogação por três anos, e ventilou a possibilidade de o Estado português recorrer da decisão da Comissão Europeia, afirmando que “não seria a primeira vez” que Bruxelas perde no Tribunal de Justiça da UE (aconteceu com o caso Apple na Irlanda, estando agora o processo ainda pendente da decisão de um novo recurso).

Em sentido oposto já se tinha posicionado a bancada do PAN, com o deputado André Silva a referir que há “empresas-fantasma” e a considerar que o cálculo do peso do centro de negócios para a economia, assente em violação de regras europeias, está a inflacionar o Produto Interno Bruto (PIB) “artificialmente” implicando uma “perda anual de mil milhões de euros em fundos europeus” para região.

"Pessoas de carne e osso"

Em nome do PS, o deputado Carlos Pereira, eleito pelo círculo da Madeira, citou um estudo da Universidade Católica de 2019 em que o regime contribui com “quase 400 milhões para o PIB” português. E contestou a posição de Mariana Mortágua dizendo que os 6000 postos de trabalho “não são ficcionais, são pessoas de carne e osso”.

Alinhado com a posição do PS, que quer alterar as regras para ir ao encontro das preocupações da Comissão Europeia, o deputado disse que a avaliação da Comissão identifica “coisas boas” (a possibilidade de existência deste regime com finalidade regional) e “coisas más que têm de ser corrigidas”.

A investigação

Ao fazer a sua fiscalização, o executivo comunitário concluiu que “o número de postos de trabalho tidos em conta por Portugal para o cálculo do montante do auxílio ao abrigo do regime incluía postos de trabalho criados fora da Zona Franca da Madeira e mesmo fora da UE”.

Outro problema: “Os postos de trabalho a tempo parcial foram incluídos nos postos de trabalho a tempo integral e os membros do conselho de administração foram contados como trabalhadores em mais do que uma empresa beneficiária do regime, sem haver recurso a um método de cálculo adequado e objectivo”.

Ao mesmo tempo, “os lucros que beneficiaram da redução fiscal não se limitavam aos lucros relacionados com actividades efectivas e materialmente realizadas na Madeira”.

O deputado disse que, sendo agora conhecida a decisão final da Comissão Europeia, a proposta do PSD é extemporânea, o que abre espaço à discussão de uma iniciativa autónoma que o Governo vai apresentar para prolongar o regime fiscal actual por mais um ano, mas com alterações ao actual Estatuto dos Benefícios Fiscais.

A carta

O actual modelo, conhecido como “regime IV”, está prestes a expirar. Pela lei, as entidades licenciadas na zona franca até 31 de Dezembro deste ano beneficiam de uma carga fiscal mais baixa até 2027, com um IRC de 5% e outros incentivos. O PSD quer prorrogá-lo, sem qualquer alteração, por mais três anos, para permitir o licenciamento de novas entidades até Dezembro de 2023 e assegurar-lhes os benefícios fiscais até 2027.

O Governo, por seu lado, já revelou que vai apresentar uma iniciativa para estender o actual regime apenas até Dezembro de 2021, alterando a lei para o blindar contra abusos.

O regime fiscal investigado pela Comissão Europeia foi o terceiro, anterior ao actual, mas este último baseia-se nesse e, do ponto de vista formal, o problema que se coloca em relação ao controlo dos postos de trabalho é idêntico. O próprio Governo já veio dizer que vai propor a prorrogação do actual regime apenas por um ano e alterar as regras para corrigir o que foi identificado como problemático no anterior. Porque, disse o secretário de Estado dos Assuntos Fiscais numa carta enviada ao Governo regional, “as observações recentemente identificadas pela Comissão a respeito do regime III” são “extensíveis ao regime IV”.

O regime III aplicou-se às entidades licenciadas entre Janeiro de 2007 e Dezembro de 2014, assegurando um regime específico às empresas até este ano de 2020, com taxas de IRC de 3% (de 2007 a 2009), de 4% (de 2010 a 2012) e de 5% desde 2013, a mesma taxa que acabou por se aplicar para as empresas do regime IV.

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