Covid-19: países pobres só vão conseguir vacinar 10% da população em 2021

Aliança de organizações para uma “Vacina Popular” defende a partilha de tecnologia por parte das farmacêuticas com vacinas bem-sucedidas. Caso contrário, alerta, vai demorar anos a proteger as pessoas nos países com menos rendimentos.

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A vacina da Pfizer já começou a ser administrada no Reino Unido, na terça-feira Dado Ruvic/Reuters

Para o Canadá ter doses de vacinas suficientes para proteger cada canadiano da covid-19 cinco vezes, países como Moçambique, Haiti ou Butão só vão poder vacinar uma em cada dez pessoas ao longo do próximo ano. Segundo um relatório da Aliança para Uma Vacina Popular, as nações ricas, onde se concentra 14% da população global, já tinham comprado em Novembro 53% do stock total das vacinas que apresentam resultados mais prometedores.

Na prática, este açambarcamento contribui para que os 69 países com mais baixos rendimentos só tenham acesso a vacinas através da Covax – uma iniciativa global de distribuição justa de futuras vacinas contra a covid-19 que junta 187 países. Só que isso não chega, alerta esta coligação de organizações não-governamentais que inclui a Amnistia Internacional ou a Oxfam e defende o acesso justo e de baixo custo às vacinas.

Até agora, a Covax garantiu 700 milhões de doses das vacinas consideradas com mais hipóteses de sucesso, mas essas doses terão de ser partilhadas entre as 3,6 mil milhões de pessoas dos 92 países de baixo e médio rendimento que aderiram à iniciativa. Entres estes há países de rendimento médio que estão a negociar em paralelo doses adicionais, como acontece com o Brasil ou Vietname.

Feitas as contas, isto significa que os 69 países mais pobres só vão poder vacinar 10% da sua população ao longo do próximo ano (com as duas doses necessárias). Pelo contrário, os países ricos – União Europeia, Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, Japão, Suíça, Austrália, Hong Kong, Macau, Nova Zelândia, Israel e Kuwait – compraram em média doses suficientes para vacinar três vezes todos os seus habitantes caso as várias vacinas em fases finais de testes sejam aprovadas. Isto enquanto “os países pobres não têm doses para chegar aos profissionais de saúde e às pessoas em risco”, sublinha Mohga Kamal Yanni, médica e consultora e integra a Aliança.

Os países ricos podem ainda tentar outras estratégias. Nos EUA, que não integram a Covax, Donald Trump assinou na terça-feira uma ordem executiva destinada a garantir que as empresas americanas fornecem o país antes de enviarem os seus stocks para fora. Mas o alcance da medida do Presidente não é claro, notam especialistas e membros da Administração ouvidos pelo jornal The New York Times e pelo canal CNN.

Segundo o Times, a Pfizer, cuja vacina já começou a ser administrada no Reino Unido, terá oferecido à Casa Branca a possibilidade de adquirir mais do que os cem milhões de doses acordadas, mas a Administração recusou – isto no Verão, quando ainda não se sabia que a vacina desenvolvida pela farmacêutica norte-americana Pfizer e pela empresa alemã BioNTech se mostraria tão bem-sucedida. O resultado, diz a CNN, é que provavelmente a Pfizer não conseguirá assegurar mais nenhuma encomenda dos EUA antes de Junho devido aos compromissos que assumiu entretanto com outros países, e a ordem executiva de Trump não será suficiente para inverter a situação.

“Ninguém devia ser impedido de receber uma vacina que salva vidas por causa do país em que vive ou da quantidade de dinheiro que tem no bolso”, diz Anna Marriott, responsável de políticas de saúde na Oxfam. “Mas a menos que algo mude drasticamente, milhares de milhões de pessoas em todo o mundo não receberão uma vacina segura e eficaz para a covid-19 nos próximos anos.”

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Donald Trump quer obrigar as empresas a vender primeiro aos EUA as suas doses de vacinas Epa

“O açambarcamento de vacinas prejudica activamente os esforços globais para garantir que todos, em todos os lugares, possam ser protegidos da covid-19”, nota Steve Cockburn, responsável de justiça económica e social na AI. Os países ricos, diz este especialista, “têm obrigações claras de direitos humanos, não devem só abster-se de tomar acções que possam prejudicar o acesso de outros às vacinas, devem também cooperar e prestar assistência aos países que dela necessitam”.

Consequências da disparidade

Mohga Kamal Yanni lembra que o problema de base está “no sistema actual, em que as farmacêuticas usam fundos dos governos para as suas investigações mas retêm direitos exclusivos e mantêm a sua tecnologia em segredo para aumentar os lucros”, um sistema “que pode custar muitas vidas”. No conjunto, diz a Aliança, as vacinas da Pfizer/BioNTech, da AstraZeneca/Oxford e da Moderna receberam cinco mil milhões de dólares de financiamento público, tendo por isso a responsabilidade de agir “no interesse público global”.

A AstraZeneca, que está a fabricar a vacina desenvolvida pela Universidade de Oxford, comprometeu-se a disponibilizar 64% das suas doses a custo de produção para os países em desenvolvimento. Esta vacina, mais barata do que as outras, pode ser armazenada a temperaturas de um frigorífico normal, o que facilitará a sua distribuição.

Mas os activistas alertam que uma só empresa nunca conseguirá produzir vacinas suficientes para todo o mundo. E é por isso que esta coligação de ONG defende que todas as farmacêuticas devem partilhar a tecnologia e propriedade intelectual das suas vacinas através da Organização Mundial da Saúde, permitindo assim que sejam produzidas doses suficientes.

No cenário de uma pandemia, como a do novo coronavírus, esta disparidade terá outras consequências para além da doença e do número de mortos nos países com menos rendimentos. Com grande parte do mundo sem acesso a quantidades suficientes de vacinas, o impacto vai fazer-se sentir nas viagens e no comércio e, por isso, na economia global.

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