Caetano, Lourenço e o espanto de se sentir “estrangeiro”

Eduardo Lourenço encontrava aos 26 anos a liberdade na condição de estrangeiro, enquanto Caetano Veloso, com a mesma idade, se via estrangeiro por força de uma inesperada reclusão.

No próximo domingo, vai ser exibido pela primeira vez em Portugal (no âmbito do DocLisboa, na Culturgest, às 10h30) o filme Narciso em Férias, onde o cantor e compositor Caetano Veloso relata de viva voz, como até aí nunca fizera, a sua experiência nos cárceres da ditadura militar brasileira em finais de 1968, princípios de 1969. Preso no dia 27 de Dezembro, experimenta a despersonalização que a prisão induz, primeiro na solitária e depois numa cela comum. Sem espelhos onde pudesse ver o próprio rosto, começou a sentir-se estranho, tão estranho quanto a personagem de O Estrangeiro, de Camus, que viria a ler por fortuito empréstimo na cadeia. “Comecei a procurar por mim mesmo na pessoa que dormia e acordava no chão daquele lugar odioso cuja imutabilidade impunha-se como prova de que não havia – nunca houvera – outros lugares”, escreveu ele no livro Verdade Tropical, no capítulo que inspirou o filme. E concluiu, desassombradamente: “Não conseguia empatia comigo mesmo (...) não gostava de mim.”

Quando foi preso, numa escura madrugada, Caetano tinha 26 anos. Com essa mesma idade, mas duas décadas antes, um jovem português atravessou pela primeira vez a fronteira rumo a França, onde viria a entusiasmar-se com uma liberdade que no seu país (em plena ditadura salazarista) não havia. Esse jovem era Eduardo Lourenço (1923-2020), que agora nos deixou, e, num artigo do PÚBLICO, Luís Miguel Queirós recordou o que ele escreveu no seu diário, em Maio de 1949, quando o comboio passou por Salamanca: “Sou estrangeiro apenas há poucas horas. E tanto bastou para encontrar a primeira palavra decisiva do meu destino. Estrangeiro. Ausente. Sozinho, entregue ao meu passado e à clarividência desta primeira noite sem ninguém conhecido à minha volta, descobri que nunca fui outra coisa desde a minha infância.”

Lourenço, que muito provavelmente gostaria de ver o filme de Caetano, encontrava aos 26 anos a liberdade na condição de estrangeiro, enquanto Caetano, com a mesma idade, se via estrangeiro por força de uma inesperada reclusão. A única canção que compôs na cadeia, Irene, foi uma espécie de samba de roda baiano, inspirado na memória do sorriso da sua irmã mais nova: “Eu quero ir, minha gente/ Eu não sou daqui/ Eu não tenho nada/ Quero ver Irene rir/ Quero ver Irene dar sua risada.” Há outra canção relacionada com o cárcere, Terra, mas foi escrita em liberdade, vários anos depois. Mas é também reveladora do efeito que a reclusão teve nele, pois foi ali, em clausura, que viu as primeiras fotografias da Terra vista do espaço, na revista Manchete levada pela sua mulher, Dedé, com quem recentemente se havia casado. “Quando eu me encontrava preso/ Na cela de uma cadeia/ Foi que eu vi pela primeira vez/ As tais fotografias/ Em que apareces inteira/ Porém lá não estavas nua/ E sim, coberta de nuvens.” Uma poética literal.

Tais paralelos e dessemelhanças interessariam Eduardo Lourenço, observador arguto (e bem-humorado) de tudo o que o rodeava. E esse interesse, para lá do seu labor intelectual, estendia-se a variadas áreas: víamo-lo, com frequência, no cinema ou em concertos de diversos géneros musicais. Quando visitava o PÚBLICO (como antes o Expresso), trazendo o manuscrito de um novo artigo, enquanto este era vertido em caracteres de computador, perdia-se em conversas sobre mil e uma coisas, durante horas, às vezes uma manhã inteira ou uma tarde. Na redacção só havia uma fiel intérprete da sua “caligrafia miudinha que exasperava os revisores de provas” (como se lhe referiu Luis Miguel Queirós no citado artigo): a saudosa Lucília Santos, com quem ele tanto conversou, animadamente, a propósito dos seus textos e da vida. E se aqueles que, ao assistirem a uma palestra que ele não tinha sequer alinhavado previamente, sentiam o “saboroso privilégio de ouvi-lo pensar ao vivo”, também com os artigos que trazia se passava o mesmo, porque, ao rever as provas, lendo-as em voz baixa, de si para si, também as ia modificando, substituindo, aprimorando. E aí, sim, víamo-lo pensar escrevendo.

“Há um astro que incide sobre esta pessoa excepcional”, disse de Eduardo Lourenço a escritora Hélia Correia, no documentário Regresso sem fim (RTP). “Que é juntar cultura, inteligência, memória, para produzir sabedoria […] e transformar essa sabedoria em dádiva, em capacidade de interpretação e de passagem.” Assim o lembraremos também, como excepcional ser humano.

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