O mundo em 2021, visitado pela Economist

Reserve as sextas-feiras para ler a newsletter de Jorge Almeida Fernandes sobre o mundo que não compreendemos.

Não fomos capazes de prevenir uma pandemia previsível. Exactamente por isso, é bom não nos enganarmos sobre o alcance das mudanças em curso. Num mundo virado de pernas para o ar, estamos a viver um dos períodos mais agitados e inovadores desde o fim da II Guerra Mundial. É uma destruição criadora. Assim é o mundo da covid. Começa a temporada dos balanços. The Economist acaba de publicar mais um dos seus tradicionais anuários: The World in 2021 (O Mundo em 2021). Que forças moldarão o mundo pós-covid e pós Trump?

Previne o editor Tom Standage: “O próximo ano promete ser particularmente imprevisível, dadas as interacções entre a pandemia, uma indefinida recuperação económica e uma turbulenta geopolítica.” Esta edição é pouco futurista e, mais do que profecia, é um exercício de leitura do annus horribilis de 2020 e do que ele projecta para 2021.

A derrota de Trump “marca o fim de uma das mais perniciosas presidências da História americana”, escreve a directora da Economist, Zanny Minton Beddoes. Para lá de Trump, a crise tem outra dimensão: “A covid-19 não se limitou a golpear a economia global. Mudou a trajectória das três grandes forças que estão a moldar o mundo moderno. A globalização foi truncada. A revolução digital foi radicalmente acelerada. E a rivalidade geopolítica entre a América e a China intensificou-se. Ao mesmo tempo, a pandemia agravou um dos piores flagelos: a desigualdade.” Até ao fim de 2021, cerca de 150 milhões de pessoas cairão provavelmente num grau de extrema pobreza. “Tudo isto significa que não há bilhete de regresso para o mundo pré-covid.”

A vacina e os comportamentos

Em 2021, continuaremos a coexistir com o vírus. Usaremos máscaras, lavaremos as mãos, manteremos o distanciamento, evitaremos multidões e teremos cuidado com os espaços fechados. Em compensação, teremos testes mais seguros e baratos. E começará a ser distribuída a vacina. Devagar, porque são muitos os obstáculos logísticos. Será o maior programa de vacinação da História. Mas a “vacinação universal” não estará ao nosso alcance em menos de três anos.

“Em 2020, esforços heróicos produziram vacinas em meses e já não em anos. Em 2021, mais esforços heróicos serão necessários para as levar do laboratório à clinica. (…) Mais excitantes são as vacinas que utilizam o ácido nucleico”, uma abordagem revolucionária.

As novas vacinas ilustram a extraordinária aceleração da investigação científica e exemplificam o extraordinário potencial da cooperação entre universidades e laboratórios. Nem tudo serão rosas. O próximo ano testemunhará dificuldades políticas e debates intensos sobre as prioridades de vacinação. A agenda dos governos será assustadora. Haverá choques com os inevitáveis “negacionistas”. Nos Estados Unidos, a vacinação vai ser politizada. A “diplomacia da vacina”, em que a China já se lançou, passará o debate para a área geopolítica, onde se esperam choques intensos entre nações. Ao contrário do que alguns escreveram, a China ainda não ganhou a “guerra da covid”.

Estão a ocorrer mudanças subterrâneas cujo alcance 2021 revelará melhor, caso do teletrabalho. “A adopção de novos comportamentos tecnológicos em resposta à pandemia, da videoconferência às compras online, significa que o seu uso já atingiu níveis que só eram esperados para daqui a muitos anos.” Na América, as compras online “tiveram em três meses um incremento previsto para dez anos”. Multiplicam-se as transacções “sem dinheiro”. A transição estende-se rapidamente a terrenos historicamente resistentes à mudança, como a saúde e a educação. Diz um médico inglês que o Serviço Nacional de Saúde (NHS) “avançou uma década numa semana”, quando os médicos se renderam às “consultas remotas”.

Este “admirável mundo novo” cobrará o seu preço, destruindo postos de trabalho ou liquidando empresas tradicionais. A recuperação económica será desigual e o mundo ocidental não tem perspectivas brilhantes.

China

Todos aguardam a investidura presidencial de Joe Biden, a 20 de Janeiro. A sua margem de manobra internacional é mais larga na política internacional do que na doméstica. No entanto, a sua força será determinada pela política americana. Trump continua a encorajar a deslegitimação de Biden e das eleições. O Partido Republicano está dele refém. Verificaremos se isto se traduzirá no boicote sistemático da Casa Branca. A vacina pode vir a ser um poderoso aliado de Biden, cuja tarefa prioritária consiste em debelar a pandemia na América.

Todos aguardam uma mudança de tom na política externa norte-americana, com o fim do “America First” e o regresso das alianças. Não será o regresso à era pré-Trump, que desapareceu do mapa. Os europeus sabem isso.

Convém aguardar as iniciativas de Biden, em especial a reformulação da política chinesa de Washington. Xi Jinping comparou a diplomacia de Trump com “um combate de boxe sem regras”. Biden inaugurará uma nova fase, de combate com regras. Há um conflito geopolítico, em que Washington deverá confrontar Pequim com o restabelecimento da sua abalada rede de alianças. E, mais importante do que o comércio e a “guerra das tarifas”, será a competição na alta tecnologia. O anuário da Economist é, naturalmente, sóbrio nesta matéria.

A vulnerabilidade humana

“Uma das maiores lições da pandemia covid-19 foi a loucura de ignorar os múltiplos avisos sobre os altamente previsíveis riscos de grande impacto: não era uma questão de se, mas de quando”, escreve a analista americana Michelle Wucker, autora do livro The Grey Rhino (O Rinoceronte Cinzento), ou mais precisamente: “O Rinoceronte Cinzento: como reconhecer e agir perante os perigos óbvios que ignoramos.”

O “rinoceronte cinzento” é o risco que se conhece e se pode evitar. Era a metáfora certa. Mas políticos e analistas recorreram à metáfora do “cisne negro” para explicar a pandemia. “Por definição, os cisnes negros não podem ser previstos, portanto não nos podemos preparar para eles. Este tipo de pensamento agrava as coisas ao encorajar o fatalismo, ao rejeitar a responsabilização, ao preferir o curto prazo e a deliberada ignorância que, por sua vez, geram a volatilidade e a dimensão do risco.”

Acordámos um dia surpreendidos por uma nova peste. Erro nosso. “A humanidade sempre foi vulnerável a pandemias devastadoras”, sublinha o filósofo australiano Toby Ord, de Oxford. Esta pandemia “é uma rara oportunidade para mudar de rota”. Lembram-se outros riscos negligenciados, da resistência aos antibióticos ao terrorismo nuclear, sem esquecer o planeta e a mudança climática.

Esta crise é uma oportunidade de progresso económico e social, escreve Minton Beddoes. “A grande questão do ano 2021 é saber se os políticos terão suficiente estatura para a aproveitar.”

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