Serra da Estrela: está na hora de dizer basta

Como se ousa sequer pensar em continuar a danificar, provavelmente para sempre, um território tão sensível e que é património de todos? Não podemos continuar a permitir que se repitam erros sobre os erros do passado e que uma das principais jóias naturais de Portugal se perca para sempre.

O semanário Expresso de 24 de outubro noticia que 82 milhões de euros de investimento serão aplicados na serra da Estrela para captar turismo durante todo o ano. Esta é uma notícia que poderia ser entendida como excelente, não fosse o potencial desastre que acompanha as ideias atribuídas à Turistrela. Há anos que vimos ouvindo propostas perigosas e sem sentido, mas está na hora de dizer basta! Ao desastre ambiental que foi o alargamento das pistas de esqui na década passada, ao desleixo do que ainda se passa no Alto da Torre, acrescenta-se um novo alargamento das pistas de esqui, uma rede de teleféricos ligando a Lagoa Comprida, Piornos e Alvoco da Serra à Torre, 260 chalés de montanha no Sabugueiro, um hotel nos Piornos, entre outras propostas para o Alto da Torre.

Como se pode pensar num desenvolvimento territorial sustentável, propondo infra-estruturas pesadas exatamente para as áreas de maior valor ambiental, paisagístico e também mais procuradas para quem quer estar em contacto com a natureza? Como se pode não entender que o território da Estrela e, em particular a área com testemunhos das glaciações, é singular na geodiversidade e na biodiversidade e, por isso, é que é protegido por lei? Como se ousa sequer pensar em continuar a danificar, provavelmente para sempre, um território tão sensível e que é património de todos? Não podemos continuar a permitir que se repitam erros sobre os erros do passado e que uma das principais jóias naturais de Portugal se perca para sempre… Ou que gerações futuras se vejam na necessidade de voltar a investir milhões para limpar o mal que, entretanto, foi feito.

Em julho passado foi aprovada pela UNESCO a candidatura do território da Serra da Estrela a Geopark Mundial. Foi assim validada, depois de cuidada avaliação, a proposta da Associação Geopark Estrela, sustentada por uma equipa internacional interdisciplinar de cientistas e de agentes do território, em sintonia com nove municípios, que visa implementar um modelo integrado de desenvolvimento para a Estrela, apoiado no desenvolvimento em torno da promoção e conservação dos valores do património natural e cultural da região. Estes valores encontram-se desde o sopé ao cume da Estrela e são bem conhecidos, tanto ao nível do património geológico, como biológico.

Sabemos também que é possível e desejável compatibilizar a conservação com a exploração turística do território. Para que este modelo, claramente definido na carta dos Geoparks da UNESCO prevaleça, é preciso continuar a trabalhar em conjunto com os empresários e com as populações, para que o investimento seja canalizado para as ações certas e que não se deixem na Estrela cicatrizes impossíveis de sarar.

No cerne da candidatura da Estrela a Geopark Mundial da UNESCO, além da riqueza cultural das suas gentes, estão os valores dos testemunhos geomorfológicos das últimas glaciações, em particular os presentes nos planaltos da Torre – Penhas Douradas e Alto da Pedrice – Curral da Nave, bem como nos vales glaciários adjacentes – Zêzere, Alforfa, Alvoco, Loriga, Caniça e Covão do Urso.

Foi também a rica história geológica deste setor central do Geopark, aliada a uma ocupação humana dominada pela pastorícia durante milénios, que permitiu o desenvolvimento de ecossistemas únicos em Portugal, enriquecidos com vários endemismos. Precisamos, por isso, de proteger a Estrela em conjunto e com uma visão de futuro e não dominada pelo lucro a curto prazo. Dentro de quatro anos, a implementação do dossier de candidatura ao território será reavaliada pela UNESCO e estamos certos de que o modelo descrito no Expresso em nada contribuirá para que a Estrela continue a ter o seu estatuto de Geopark Mundial revalidado.

O investimento em novas infra-estruturas turísticas deve ser prioritariamente realizado nas áreas baixas da Estrela e os erros já feitos nas áreas altas devem ser corrigidos. Vem para o caso o edifício do teleférico dos Piornos, para onde está proposto um hotel, mas que efectivamente deveria ser demolido.

É onde vivem as pessoas que o emprego faz falta. Criar emprego fora dos núcleos urbanos, obrigando a movimentos pendulares desnecessários é impensável no quadro de alterações climáticas que vivemos e não contribui para o bem-estar daqueles que irão perder horas em deslocações diárias. A área alta da Estrela tem pois de ser cuidada, e as atividades turísticas devidamente enquadradas à luz da conservação da natureza, de uma forma clara para todos os visitantes. É fundamental que se saiba o que se pode ou não fazer, e como se pode fazer. As atividades de turismo de montanha devem ser fomentadas, mas com responsabilização pelo uso do território, tornando-se os agentes turísticos também em agentes da conservação. Este é um modelo já presente em diversas regiões do mundo e que importa consolidar.

Como salientado na notícia do Expresso, e como temos vindo também a verificar no território, nunca houve tanta visitação à Estrela e tão disseminada ao longo do ano. Este aumento da procura no contacto com a natureza é uma mudança cultural nítida nos portugueses nos últimos dez anos, mas que parece ter sido potenciada com a pandemia no verão passado. Aliás, estudos recentes realizados pelo Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa, em parceria com o Geopark, estão a confirmar o que temíamos: o aumento da procura nas áreas altas está já a contribuir para o aumento da erosão dos solos em alguns dos locais mais sensíveis da Estrela.

Devemos, por isso, aproveitar os ensinamentos do aumento da procura da montanha, não para a arruinar, mas para a melhorar, construindo as infra-estruturas certas nos locais certos, reflorestando também de forma correta e dando à Estrela o que ela merece. Usemos o modelo de desenvolvimento proposto pelo Geopark Estrela, que tem uma equipa dedicada a aproximar as populações e os agentes económicos, e que está preparada para ajudar a contribuir para um futuro melhor para a Estrela e para as suas gentes. Não deixemos cair o Estrela Geopark Mundial da UNESCO.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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