Proença-a-Nova: voltar ao vale encaixado onde não fomos felizes

Uma curva “muito apertada” num “vale encaixado, em chaminé”. “Grande densidade de regeneração natural de pinheiros” que cresceu “sem ordenamento nem gestão”. “Duzentas toneladas de matéria ardível por hectare”. “Elevada exposição solar”. “Stress hídrico brutal”. Tudo “pronto para arder, no pico daquele sol”. À volta, “cumeadas e cumeadas de pinhal”. Regresso ao local do “incêndio com alinhamento perfeito” de Proença-a-Nova.

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Estrada municipal 1309-1. Curvas e contracurvas em direcção ao vale. O velho alcatrão a esfarelar de onde em onde para as valetas e a estreiteza e sinuosidade da via mal deixam passar um carro pelo outro, se o acaso se der. Não se vê vivalma em pleno dia. Da janela do jipe, avista-se um misto espontâneo e denso de múltiplas espécies arbóreas, sobretudo pinheiros. Também eucaliptos. E mato. Muito mato: carqueja, tojo, esteva, urzes, giestas, carrasco e medronheiros, ou não fosse ali a aguardente de medronho uma fonte de receita familiar. Da janela do condutor e do vidro da frente, só o negro das cinzas já assentes pela chuva e a nudez agreste de centenas de hectares de terreno dizimado.

Descemos ao vale encaixado onde tudo começou, entre Penafalcão – freguesia de Sobreira Formosa, concelho de Proença-a-Nova, 52 habitantes – e Cunqueiros – aldeia tradicional da mesma freguesia com o maior aglomerado de xisto do município (e 122 habitantes).

Tiago Marques, comandante dos Bombeiros Voluntários de Proença-a-Nova, não estava de serviço naquele domingo, 13 de Setembro, em que soou o alerta às 13 horas e 43 minutos. Haveria, contudo, de juntar-se à corporação que integrou a força de combate ao fogo que lá deflagrou e que, “no período de maior esforço”, chegou a mobilizar “mais de 1100 operacionais”, entre bombeiros, Protecção Civil, forças de segurança (GNR, PSP, PJ), Exército, Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), INEM, Cruz Vermelha e, até, a Segurança Social.

O “comportamento extremo do incêndio, o declive, a orografia, as condições meteorológicas e a velocidade do vento” haveriam de ditar que um carro da sua corporação e quatro dos seus bombeiros saíssem queimados logo no arranque das operações. “O primeiro carro estava a reposicionar-se no terreno e foi surpreendido pela frente do incêndio”, explicou ao PÚBLICO, emocionado.

“Foi um sentimento de impotência”, acrescentou José Neves, comandante dos Bombeiros do concelho de Castelo Branco, que também nos acompanhou na reportagem.

“O fogo percorreu cinco quilómetros em linha recta na primeira hora”, completou Francisco Peraboa, Comandante Operacional Distrital do Comando de Operações de Socorro de Castelo Branco, que, com o PÚBLICO, também galgou os pedregulhos monte acima até à entrada de uma mina em cujas imediações, sabe, foi localizado “um artefacto”, alegadamente relacionado com a causa – dolosa – do fogo​. Serpenteia ainda por lá, meio derretido, escassos trinta metros acima da beira da estrada, um delgado tubo de borracha que transportava água a partir do interior da pequena gruta.

O incêndio depressa engoliu a encosta e as subsequentes “cumeadas e cumeadas de pinhal” da região, e acabou por alastrar ao concelho de Oleiros, tal era a “densidade da matéria ardível” – “200 toneladas por hectare” – e a “intensidade e a carga gerada, muito destrutivas”. Acabou por consumir uma área total de 14.878 hectares e só foi dado como dominado na quarta-feira, dia 16.

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Prejuízos superiores a 7 milhões

O município de Proença-a-Nova estima que “os prejuízos do incêndio de 13 de Setembro sejam superiores a 7 milhões de euros”. É um “valor provisório”, apresentado pelo presidente da autarquia, João Lobo, na reunião de câmara de 21 de Setembro, mas que soma prejuízos, não só florestais, como também ambientais, agrícolas, de infra-estruturas e de recursos hídricos destruídos ou danificados pelo fogo.

Uma nota publicada no website da autarquia dá conta de que os técnicos municipais ainda andam no terreno para, “em conjunto com as populações, concluírem o levantamento”.

Na mesma informação, a Câmara faz notar que João Lobo, que foi das primeiras pessoas a chegar ao local onde as chamas deflagraram e não teve dúvidas em declarar que “foi mão criminosa, de certeza absoluta”, deixou um pedido ao ministro da Administração Interna. Transmitiu a Eduardo Cabrita “a necessidade de o Governo, através do Ministério da Agricultura, abrir um aviso específico de apoio para os pequenos agricultores que, de um momento para o outro, perderam uma importante fonte de rendimento”.

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No mesmo lugar que ardeu em 2003, os bombeiros encontraram “uma extensa zona de regeneração natural” de pinhal, “sem ordenamento, sem gestão". Francisco Peraboa sublinha: "Se não houver gestão da floresta, se houver extractos arbóreos e continuidade de combustível, há continuidade do fogo.”

“Tudo sem ordenamento, sem gestão”

Mais de três semanas volvidas, de volta ao terreno a convite do PÚBLICO, Francisco Peraboa, Comandante Operacional Distrital dos Bombeiro de Castelo Branco, constata: “Deparámo-nos com uma extensa zona de regeneração natural da grande área ardida em 2003, que ardeu mais ou menos na mesma data [há 17 anos]”. Estava tudo, garante, “sem ordenamento, sem gestão. E se não houver gestão da floresta, se houver extractos arbóreos e continuidade de combustível, há continuidade do fogo.”

Em entrevista ao PÚBLICO a 14 de Setembro, durante o segundo dia do incêndio, João Catarino, secretário de Estado da Conservação da Natureza, das Florestas e do Ordenamento do Território, também se referiu à “mancha contínua” de pinheiro-bravo e eucalipto na região, “sem compartimentação”.

Se, a somar a isso, as condições climatéricas não ajudarem, “não é possível parar a progressão do fogo”, acrescenta Pedro Nunes, Comandante Operacional do Agrupamento Distrital de Operações de Socorro do Centro Norte da Autoridade Nacional de Protecção Civil. Foi ele o primeiro a aceitar o repto do PÚBLICO para voltar ao vale onde aqueles operacionais não foram felizes.

“Há determinados momentos em que um incêndio está acima da capacidade de extinção”, nota o comandante. Só quando há “uma quebra”, seja “ao nível meteorológico, o que dá uma mão para que se ataque o fogo”, seja “pela alteração do padrão dos combustíveis”, é possível o ataque. Pedro Nunes dá um exemplo: “Se a meio do fogo deixa de haver pinheiro-bravo e passa a haver uma área de carvalho, ganha-se uma oportunidade para controlar a progressão do fogo.”

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“Se a meio do fogo deixa de haver pinheiro-bravo e passa a haver uma área de carvalho", explica o comandante Pedro Nunes, "ganha-se uma oportunidade para controlar a progressão do fogo”. Essa oportunidade nunca existiu em Proença-a-Nova, onde a mancha de pinheiro-bravo era contínua e sem compartimentação.

“Rearborização deveria ter sido gerida”

Essa oportunidade nunca existiu em Proença-a-Nova. “Uma imensa continuidade” de mancha florestal de pinheiro-bravo e “o vento, que não abrandou durante os dois primeiros dias”, foram os dois “factores negativos conjugados” que levaram a que “as janelas de oportunidade que tivessem sido encontradas não tenham sido aproveitadas”, relatou ao PÚBLICO a 16 de Setembro Francisco Castro Rego, presidente do Observatório Técnico Independente dos incêndios, criado pela Assembleia da República.

Também no dia em que o incêndio foi dado como dominado, o presidente da Direcção do Centro Pinus, estrutura que agrega os principais agentes da fileira do pinho em Portugal, confirmava ao PÚBLICO que “a natureza tinha oferecido uma rearborização gratuita que deveria ter sido acarinhada e gerida, o que teria contribuído para prevenir este incêndio”. Mas, afinal, tinha acontecido o pior: “Sabemos que há uma área significativa de regeneração natural de pinheiro-bravo que, lamentavelmente, desapareceu neste incêndio”, disse João Gonçalves.

O diagnóstico não é novo. O volume em crescimento do pinheiro-bravo em Portugal registou um decréscimo “impressionante” de 37% entre 2005 e 2019, com a perda de 27% da área plantada no período de 1995 a 2015 (13.240 hectares por ano, em média), sobretudo devido ao efeito destruidor dos fogos florestais. Ainda assim, em 2019, a fileira do pinho em Portugal representava 81% dos postos de trabalho e 88% das empresas das indústrias florestais do país.

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Pinheiros de 15 metros e chamas com 30”

Às 13 horas e 43 minutos do dia 13 de Setembro, uma ignição, dolosa ou não – a Polícia Judiciária “estará a investigar”, refere Francisco Peraboa –, associada à ausência de gestão florestal e às condições climatéricas naquele “vale encaixado, em chaminé”, determinaram o início deste desenlace.

“Passámos o verão todo sem qualquer humidade, o distrito de Castelo Branco foi, a seguir aos de Évora e Portalegre, o que teve mais severidade meteorológica, a humidade relativa não baixou durante as duas primeiras noites [do incêndio], o vento manteve-se, os combustíveis estavam secos, prontos a arder e quando comecei a colocar os primeiros meios no terreno o comportamento do fogo era extremo”, descreve José Neves, comandante dos Bombeiros do concelho de Castelo Branco. “Chegou a consumir 900 hectares por hora. Muita velocidade e um enorme poder calorífico. E com pinheiros de 15 metros e chamas com 30 metros, não somos eficazes. É muito, muito difícil chegar à cabeça do incêndio, vamos indo pelos flancos.”

Pedro Nunes complementa: “Este ano bateram-se picos” nos índices de severidade medidos pelo IPMA – Instituto Português do Mar e da Atmosfera através do DSR (daily severity rating, em inglês). E estes “blocos de dias ou semanas de severidade meteorológica, sem brisas do Atlântico, com correntes vindas do interior de Espanha ou do Norte de África, sobretudo os combustíveis finos [com menos de seis milímetros de espessura] e médios [ramos com entre 25 e 75 milímetros], estão no ponto para arder”.

Devido também às “fortes inclinações, de difícil acesso”, e ao efeito das colunas de convecção que aquecem a vegetação acima do incêndio e aumentam a velocidade de propagação no sentido ascendente, aquele foi, na verdade, “um incêndio com um alinhamento perfeito”. E “com muito boas condições para se desenvolver”, constata Francisco Peraboa. “Tinha tudo para correr mal.”

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Devido às “fortes inclinações, de difícil acesso”, e ao efeito das colunas de convecção que aquecem a vegetação acima do incêndio e aumentam a velocidade de propagação no sentido ascendente, aquele foi, diz o comandante Peraboa, “um incêndio com um alinhamento perfeito”.

“Para gerir uma floresta é preciso pessoas”

O facto é que “as populações não têm a noção de que, às vezes, não é possível combater. Um fogo de copas, por exemplo, não permite que os bombeiros cheguem perto. É impossível chegar lá”, nota Francisco Peraboa.

E a juntar à incompreensão da população local, há “um sentimento de revolta”, porque as pessoas “não estão preparadas emocionalmente para aceitar estas situações”, que implicam até, em certos casos, a evacuação das habitações para salvaguarda de pessoas e bens.

Tiago Marques fala mesmo em “falta de cultura de segurança das populações”, porque, especificamente naqueles dias, “não podia haver incêndios, devido às condições climatéricas”. Mas, mesmo assim, “aconteceu”. “Esquecemo-nos da prevenção e depois as populações só se lembram ‘Porque é que o incêndio não é combatido rapidamente?’.”

O comandante Operacional Distrital dos Bombeiro de Castelo Branco desafia-nos a um esquema mental: “Há todo um histórico até chegar à ignição. Um fogo precisa de três coisas: comburente (oxigénio), combustível e ignição.” O problema, diz Francisco Peraboa, é que, “na maior parte das vezes, só olhamos para a ignição e não vemos o resto, a cadeia que suporta o incêndio, que não é interrompida”. Quando há ignição, tem de haver interrupção. Das duas uma: “Ou retiramos o combustível ou arrefecemos o local”.

Daí que volte a realçar a falta de gestão do território florestal como causa para o alastrar de um fogo em caso de ignição, pois, como diz, “para gerir uma floresta é preciso pessoas e maquinaria”. E Castelo Branco, que compreende as sub-regiões Beira Interior Sul, Pinhal Interior Sul e Cova da Beira, é o quarto maior distrito português em área (6675 km²), mas “o quarto mais despovoado do país”. Tem uma população residente (2011) de 196 264 habitantes (34 habitantes/km²).

Não falando na escassez de meios de combate para os 660 mil hectares de floresta. Francisco Peraboa vai lembrando: “Viana do Castelo, que, em termos territoriais, é o distrito mais pequeno do país, tem as mesmas corporações de bombeiros – 12 – que o distrito de Castelo Branco.”

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Madeira queimada para serração na Sertã

Quem sai do quartel dos bombeiros de Proença-a-Nova e entra na Estrada Nacional 351, que faz a ligação para Oleiros, não escapa de ver quilómetros e quilómetros de destruição. Parados junto aos rails de protecção a mais de 800 metros de altitude, o vento cortante empurra-nos o corpo e o olhar: “cumeadas e cumeadas de pinhal ardido” a perder de vista.

Ao longe, avista-se o casario da cidade de Castelo Branco. Aos nossos pés, um manto negro pinta o chão dizimado e milhares de árvores ardidas de pequeno porte jazem de pé à espera de um destino.

Destino leva já a madeira de maior porte do monte mais a montante. Ditou o acaso que, enquanto parámos e conversávamos com os quatro protagonistas desta reportagem na beira da estrada, um camião com dois semi-reboques carregados de grossos toros de pinheiro foi obrigado a abrandar a marcha para se cruzar em segurança com os jipes dos bombeiros e da Protecção Civil.

É madeira queimada do incêndio?, questionámos. O motorista anuiu. À pergunta sobre o fim daqueles troncos, a resposta saiu-lhe por entre dentes: “Vão para uma serração na Sertã.”

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