O que fazer, quando a pessoa com quem partilhámos a nossa intimidade decide torná-la pública?

Com o crescimento do fenómeno de sexting e a partilha de nudes, há cada vez mais portugueses a pedirem ajuda por terem os seus conteúdos íntimos revelados. A pandemia também contribuiu.

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São reportados cada vez mais casos de sextortion e revenge porn em Portugal PAULO PIMENTA

O conceito de sexting não é novo, mas tem ganho adeptos ao longo dos últimos anos, o que pode ser explicado pela democratização do acesso aos smartphones, ao crescimento da popularidade das redes sociais e da troca de mensagens. Trata-se de enviar ou receber conteúdos como fotografias, vídeos ou áudios sexualmente sugestivos e, já em 2018, um estudo publicado pela JAMA Pediatrics revelava que cerca de um quarto dos adolescentes usa a Internet para a partilha desses conteúdos, maioritariamente através de plataformas de conversa como o Messenger ou o WhatsApp.

Contudo, há sempre uma questão que aterroriza quem participa nessa troca: e se esses conteúdos se tornam públicos? O número de pessoas que lidam com essa questão em primeira mão em Portugal tem aumentado ao longo dos últimos anos, explica Ricardo Estrela, responsável pela operacionalização das linhas Internet Segura e Alerta da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima (APAV), gerida por uma equipa de cerca de 20 voluntários peritos em áreas como a psicologia, direito e serviço social. 

“Se no ano passado estaríamos a falar de dezenas de pessoas [que procuram o apoio da APAV], este ano seguramente estamos a falar em centenas”, diz ao PÚBLICO. Esse aumento rápido pode estar “muito ligado” ao próprio contexto de pandemia, já que o confinamento e a redução dos encontros presenciais podem ter feito com que “cada vez mais os jovens e jovens adultos procurem interacções sexuais pelos meios que lhes é permitido, que neste caso é a Internet”.

O PÚBLICO falou com três especialistas para tentar perceber o que é que as vítimas desta divulgação não autorizada – ou de ameaças – podem fazer para combater o problema do chamado “sextortion” ou “revenge porn”.

O que fazer perante uma ameaça de divulgação?

A linha pela qual Ricardo Estrela é responsável pode ser um primeiro passo na procura de “qualquer tipo de orientação”, até porque “os casos podem tornar-se muito complexos”.

A primeira preocupação é identificar o agressor. Se, por um lado, estas situações acontecem muito entre namorados e casais, sobretudo no término das relações, explica Pedro Duro, advogado especialista em Direito Penal, sócio do escritório Campos Ferreira, Sá Carneiro & Associados, por outro lado, uma das “preocupações crescentes” é o chamado sextortion, ou seja, explica Ricardo Estrela, através de emails falsos é solicitado um pagamento (em bitcoins) para que as imagens não sejam divulgadas, amedrontando as vítimas com a possibilidade de esse conteúdo poder ir “parar às mãos erradas”. Este tipo de extorsão também pode ser feito por ex-namorados.

Feita essa distinção, Pedro Freitas, professor na Faculdade de Direito da Universidade Católica Portuguesa, no Porto, lembra que importa identificar o conteúdo com que se está a ser ameaçado para perceber se este foi gravado de forma consciente e enviado deliberadamente, ou se a forma de obtenção foi ilícita. Ambas as possibilidades podem ser punidas legalmente, embora de formas diferentes.

O passo seguinte é analisar o conteúdo e perceber “se a pessoa salvaguardou a sua identidade ou não” quando fez o envio, de forma a “perceber qual pode ser a extensão do dano”, continua Ricardo Estrela, que aproveita para deixar o conselho e lembrar que, se essa salvaguarda for feita, “o impacto de uma possível divulgação pode ser muito menor”.

Esclarecido o contexto, a atenção vira-se para “o que está a ser pedido em troca por parte do agressor ou agressora”. Aqui os três especialistas identificam várias motivações: retaliar pelo término da relação e exigir um reatar, extorsão, ou até obter mais conteúdo íntimo. O último ponto “acontece muito no caso dos menores”, explica o responsável da APAV, sobretudo por adultos que depois “fazem dinheiro com esse conteúdo em plataformas de pornografia infantil”. No final, todas essas razões podem ser consideradas coacção e punidas.

Entre as três opções, a resposta relativamente ao pagamento é a mais “simples” para Ricardo Estrela: “Nunca. Pagar nunca.” Isto, porque “indica ao agressor que a pessoa tem ou arranja disponibilidade financeira”. “Já nos aconteceu aqui na linha pessoas abrirem linhas de crédito para pagar essa extorsão”, conta. A experiência diz-lhes que “em 100% dos casos”, depois do primeiro pagamento “vêm outros pedidos e entra-se num círculo vicioso”.

A resposta da APAV será “diferente mediante os casos”, mas sempre com o objectivo de “minimizar o dano da exposição”. Caso os agressores revelem a plataforma em que pretendem partilhar os conteúdos, isso pode funcionar como um trunfo para quem quer impedi-lo. No caso do Facebook, é possível, “através de formulário próprio”, e caso a vítima ainda tenha acesso aos conteúdos com os quais está a ser ameaçada”, partilhá-los em primeira linha com a rede social e, através de uma tecnologia de reconhecimento, esta impede a sua publicação. Isto, “mesmo que a fotografia ou vídeo estejam alterados com algum filtro”, já que “o código-base é muito parecido com o original” e assim “a tecnologia permite que o upload seja vedado”.

Deste modo, o primeiro objectivo é barrar a primeira publicação. Isto, porque há a noção de que qualquer conteúdo publicado pode ser rapidamente guardado por quem passar por ele através de, por exemplo, capturas de ecrã, por mais célere que sejam as plataformas a retirá-lo. E Ricardo Estrela é realista: “Tem de ficar clara a mensagem de que, uma vez partilhadas estas imagens e vídeos íntimos, é muito difícil evitar a exposição.”

É possível fazer queixa?

Não é preciso que se chegue ao ponto de haver uma divulgação para que seja possível fazer-se queixa-crime junto das autoridades. A própria ameaça dessa divulgação, mesmo que não se concretize, “é um crime que é punido pelo Código Penal no Artigo 153.º”, esclarece ao PÚBLICO Pedro Freitas; e representam situações em que se pode “apresentar queixa junto da Polícia Judiciária ou do Ministério Público”. De acordo com a legislação, o crime “é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias”.

Associada à ameaça está “muitas vezes a coacção”, lembra também o advogado Pedro Duro, especialista em Direito Penal. De forma simplificada, refere-se à chamada chantagem assumida nas ameaças. Descrito no Artigo 154.º, “é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa”. Além disso, mesmo que a vítima não ceda à coacção, “a própria tentativa [por parte de quem faz chantagem] é punida”, explica Pedro Duro.

Ambos os especialistas em Direito reforçam: se, por um lado, é óbvio que a gravação não consensual é ilegal, de acordo com o Artigo 199.º, não é por as imagens ou conteúdos terem sido partilhados deliberadamente que isso retira a possibilidade de apresentar queixa-crime perante uma ameaça de as tornar públicas. “Eu posso ceder deliberadamente as fotografias, mas não as cedi para a sua divulgação”, exemplifica Pedro Duro. Mais: mesmo que o agressor ou agressora também apareça nas fotografias ou vídeos, “está-se a divulgar imagens de terceiros”, o que continua a ser punível.

Feita a queixa por ameaça, o que acontece?

Em primeiro lugar, explica Ricardo Estrela da APAV, “o tribunal pode impor um dever de conduta e impor ao agressor que apague os conteúdos que tem na sua posse”, isto, partindo do pressuposto que nunca foram partilhados.

Ainda assim, “nada garante que não tenha mais cópias e que mais tarde possa ser partilhado”, lamenta. “Isso não há como garantir”, confirma Pedro Duro, enquanto Pedro Freitas admite que “quem trabalha com estas questões das tecnologias não pode afirmar com certeza absoluta que algo digital seja alguma vez apagado”. Pode também ser determinado um conjunto de obrigações, lembra Pedro Freitas, tais como “não ir a determinados lugares, não falar com determinadas pessoas”, ou, em “casos mais extremos”, proibir temporariamente a utilização de smartphones ou computadores.

Todavia, mesmo que isso seja difícil de policiar, Ricardo Estrela considera que “é sempre importante” que seja feita a queixa-crime e que as autoridades determinem que o agressor deva apagar os conteúdos, mesmo que não haja forma de garantir que isso é cumprido. Isto, para que “não haja um sentimento de impunidade” e para que “a pessoa que agride pelo menos seja chamada a prestar declarações e seja alvo de um processo-crime”, funcionando assim como “um elemento dissuasor”. O responsável pela linha da APAV sublinha como isso é importante para que “haja mais casos julgados nesta matéria e que mais pessoas comecem a ser punidas pela prática destes crimes”.

Apesar de tudo, e relativamente às ameaças e coacção, o professor Pedro Freitas admite que “têm um limite máximo bastante baixo” no que toca às penas e, por isso, “tendencialmente os juízes, até por forças das regras do Código Penal, não aplicam a pena de prisão efectiva”, dando preferência, por exemplo, às multas ou penas suspensas. 

E se as imagens forem divulgadas?

Aqui, a primeira preocupação de Ricardo Freitas, da APAV, é tentar perceber em que plataformas o conteúdo está disponível. Além das várias formas que existem para as pessoas individualmente pedirem a retirada de conteúdos seja de redes sociais, seja até de sites pornográficos, na Linha Internet Segura “há protocolos próprios com várias plataformas de partilha de imagens que permitem pedir de uma forma mais célere a remoção do conteúdo”.

Contudo, como refere Pedro Duro, é sempre difícil “eliminar o rasto”: “Apesar de se conseguir eliminar as páginas originais, entretanto, seja por printscreen, seja por onde for, já houve grande circulação por outras plataformas.” Algo que “é muito difícil de evitar”, lamenta.

Prosseguir para uma queixa-crime é um dos rumos. Segundo a Procuradoria-Geral da República, em resposta escrita ao PÚBLICO, “existe uma clara percepção de que este tipo de situações têm vindo a ser reportadas ao Ministério Público com crescente frequência”, ainda que o facto de se estar a discutir “fenómenos criminais e não específicos tipos de crime” faça com que não seja possível saber o número exacto de casos que deram entrada.

Depois da divulgação, vamos às leis

A divulgação dos conteúdos por si só é punível criminalmente, independentemente de terem sido obtidos de forma lícita ou ilícita, começa por explicar Pedro Freitas, já que, mesmo que tenham sido enviados de forma deliberada, “foram produzidos num contexto de intimidade e confiança” em que seria expectável que fossem mantidos em privacidade. “Estamos a falar da percepção da privacidade e intimidade das pessoas”, diz.

Isso já não acontece, como exemplifica o professor, com o caso dos três jovens que tiveram relações sexuais no comboio da CP este mês. “Era um acto de intimidade? Era. Mas foram as próprias pessoas que se colocaram numa situação, num espaço público em que sabem que vão ter essa exposição”, defende. Nesses casos, a expectativa de privacidade “não pode ser a mesma”, alega.

Num cenário “comum” em que “um casal de namorados troca fotos íntimas através de WhatsApp”, segundo o professor “há uma expectativa de privacidade” e, havendo uma divulgação, “entramos no crime do Artigo 192.º da devassa da vida privada”.

É possível ter a mesma expectativa de privacidade ao partilhar esses conteúdos em chats de grupo? Caso se trate de um grupo reservado, Pedro Freitas considera que, embora “possa eventualmente existir a expectativa” de que o conteúdo se manterá privado, “não se pode levianamente esperar que essas imagens fiquem aí contidas”. Segundo o professor, não se pode “esperar que o Direito Penal resolva todos os problemas”. Por isso, apela a que haja “cuidado com a presença online” dessas imagens.

Quanto à divulgação propriamente dita de conteúdos não autorizados, sejam imagens, vídeos ou até emails ou mensagens, está descrito no Código Penal como devassa da vida privada no Artigo 192.º. A pena de prisão varia entre um mês e um ano, ou uma pena de multa até 240 dias. A divulgação através da Internet e das redes sociais pressupõe um agravamento de um terço na pena aplicada, elevando o máximo para um ano e quatro meses.

E os peritos alertam: mesmo quem repartilhar conteúdos que tenham vindo por outras pessoas também está a incorrer num crime, um “fenómeno em crescimento”, sobretudo em grupos de WhatsApp, relata Ricardo Estrela, que sublinha que “já começa a haver vários grupos em várias plataformas que se dedicam apenas à partilha de conteúdo não consentido de portugueses”. Um dos principais problemas, para além da vertente ilegal, é que se está a “criar um sentimento de normalização dessas práticas”. ​Ou como explica Pedro Duro: “Se me mandaram uma fotografia em que a pessoa retratada não autorizou a partilha, eu ao divulgá-la estou a praticar um crime.” 

Tendo em conta o contexto frequente de relações amorosas por detrás destes casos, estes são “recentemente englobados na questão da violência doméstica”, continua o sócio do escritório Campos Ferreira, Sá Carneiro & Associados ao falar sobre este crime, que inclui “relações tradicionais, relações de namoro ou ex-namoro, mesmo que de curta duração e sem coabitação”. Quando isso acontece, diz Pedro Freitas, “há um agravamento da pena que pode ir até aos cinco anos”, o que é “completamente diferente da pena de devassa da vida privada”. Isto explica-se, segundo o professor universitário, porque “nessas situações temos muitas vezes um ambiente de coacção, inflicção de maus tratos e medo que têm efeitos psíquicos e físicos muito mais profundos do que noutras situações”.

Enquanto no caso da devassa da vida privada o procedimento depende sempre da queixa, isso já não acontece nos crimes de violência doméstica. “O problema é que depois as pessoas podem chegar lá e dizer que deram consentimento a tudo”, lamenta Pedro Duro.

Qual o desfecho dos casos em tribunal?

“Tendencialmente, a nível sancionatório, o que se tem passado é a opção por penas de multa ou penas suspensas”, responde Pedro Freitas, ainda que considere que “provavelmente justificar-se-ia um agravamento das sanções aplicáveis”.

Então porque não são aplicadas penas efectivas? A questão “não é nova”, sublinha o professor, e estende-se ao sistema penal em si. “O drama estatal é no sentido de tentar reintegrar as pessoas na sociedade e, nessa medida, não faz muito sentido colocá-las em estabelecimentos prisionais, sobretudo quando toca a crimes mais leves, porque o efeito que decorre dessa aplicação da pena de prisão pode ser até contraproducente”, argumenta.

Porém, o docente admite que isso pode levar a que haja “uma descrença no sistema de justiça penal” e que se traduza em que as vítimas não apresentem queixa, criando um sentimento de que “a justiça não é feita”.

A experiência de Ricardo Estrela diz-lhe que “ainda há muito por fazer em Portugal” e que existem “poucas decisões disponíveis ao nível da jurisprudência”. A mesma experiência também lhe mostra que “as pessoas preferem muito mais soluções no imediato”, pelo menos que “dêem a sensação de que o problema foi resolvido” – ou seja, as vítimas, se acharem que o conteúdo foi retirado do ar, “muitas vezes já ficam satisfeitas e não andam para a frente com as queixas”, o que o técnico da APAV lamenta. 

O responsável reconhece que “por uma falta de meios ou procedimentos internos nas polícias” a recolha de provas e a partilha de informações entre autoridades, mesmo a nível internacional, “não são tão céleres quanto deveriam ser”.

Por sua vez, Pedro Duro considera que “ainda que as pessoas consigam uma vitória de Pirro que é a condenação, no final, nesta sociedade mais ou menos hipócrita que acha que as pessoas não têm vida sexual, acabam por ficar com o nome manchado por essas imagens terem sido divulgadas, quer a nível pessoal, quer profissional”.

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