Para que as “artes vivas” possam acontecer, é preciso “estar junto”

União, colaboração e resistência são os fios condutores da sexta edição do programa O Museu como Performance, que este fim-de-semana leva a Serralves uma série de propostas artísticas interdisciplinares.

Foto
Breach I, da performer Máiréad Delaney Tif Robinette

Entre Dezembro de 2019 e Julho deste ano, a Biblioteca do Museu de Serralves apresentou um projecto expositivo que revisitava os últimos 20 anos de actividade do Serviço de Artes Performativas da instituição, num gesto que procurava catalogar e celebrar uma história to be continued, mas que parecia, sobretudo, querer refundar o compromisso primordial do museu com a performance e as práticas transdisciplinares contemporâneas. Estás Aqui, o  título da exposição, traduzia, segundo os curadores, um conjunto de características inalienáveis das artes performativas: a presença e o envolvimento do espectador, o espírito colaborativo, o “aqui e agora”. 

É esta ideia do “estar junto num dado momento e lugar” que dá corpo à sexta edição do programa O Museu como Performance, que este fim-de-semana ocupa vários espaços de Serralves com propostas na fronteira entre as artes performativas, as artes visuais, o cinema e a música. De certa forma, esta edição funciona quase como um segundo capítulo de Estás Aqui, sublinhando a importância da experiência presencial e participativa inerente às “artes vivas” numa altura em que tais dinâmicas colectivas têm vindo a ser postas em causa pela crise pandémica. “Fazer O Museu como Performance poucos meses depois da exposição – e quando as incertezas quanto ao futuro da apresentação de artes performativas ainda ultrapassam as certezas – tornou-se numa espécie de manifesto”, afirmam os programadores Cristina Grande, Pedro Rocha e Ricardo Nicolau, trio também responsável pela curadoria de Estás Aqui.

Para eles, “a presença do aqui e agora” é o “mínimo denominador comum” para que as artes vivas existam e aconteçam na sua plenitude. “A possibilidade de ‘estar aqui’ não pode desaparecer”, insistem, mesmo quando a digitalização da cultura começa a ser um plano b cada vez mais incontornável. Também por isso, consideram “fundamental resistir e reagir” perante o actual cenário de imprevisibilidade e de precariedade na criação artística com “um museu aberto, vivo e a cumprir a sua função”. Sem ter sido necessária nenhuma alteração significativa à programação – tal como nos anos anteriores, os artistas internacionais continuam a marcar presença –, esta edição propõe uma série de projectos que funcionam como caixa-de-ressonância das actuais disputas políticas, sociais e culturais, acreditam os curadores (o que não deixa de ser irónico, tendo em conta a situação de conflito aberto, ainda por resolver, entre a administração da Fundação de Serralves e os trabalhadores precários do Serviço Educativo da instituição, que a acusam de os ter “descartado” durante o período de confinamento).

Algumas propostas ganham até uma pertinência redobrada à luz dos acontecimentos dos últimos meses, caso de Relay, da coreógrafa Ula Sickle. Estreada em 2018, esta performance duracional evoca imagens de protestos através do movimento contínuo de uma bandeira preta, que é passada de mão em mão entre diversos performers – é inevitável pensar nas manifestações anti-racismo que se têm intensificado nos EUA (e não só) desde o assassinato de George Floyd. Simultaneamente, esta performance “sublinha a ideia de esforço colaborativo”, particularmente amplificada nesta edição através de vários trabalhos em parceria: entre eles, Pin Dor Ama Primeira Lição, de Dori Nigro e Paulo Pinto, artistas e educadores brasileiros residentes no Porto. Nesta criação em estreia, a dupla procura “arrancar a máscara do vírus ancestral”, e motor de inúmeras violências no presente, que é o colonialismo.

União, colaboração, resistência

Esta ligação entre “união e resistência”, num momento em que “as regras sanitárias tendem a tolher e controlar as possibilidades”, é explorada ainda de forma “mais subtil”, notam Cristina Grande, Pedro Rocha e Ricardo Nicolau. Por um lado, no contexto dos cruzamentos disciplinares trespassados pelas artes performativas – exemplo disso são os vídeos da italiana Sara Manente, feitos em colaboração com artistas de diversos quadrantes e que poderão ser vistos em permanência na Casa do Cinema Manoel de Oliveira, novidade no circuito de espaços deste ano. Por outro lado, há trabalhos que testam os limites da própria resistência física, como Breach I, da performer Máiréad Delaney, ou mesmo a instalação-performance musical Auto-Retrato, de José Alberto Gomes e João Dias, que tem a duração de quatro horas (há vários projectos duracionais nesta edição, o que facilita a possibilidade de pequenos grupos de espectadores se revezarem entre espaços, um bónus em tempos de covid-19).

E porque o “estar junto” funciona como o principal fio condutor deste O Museu como Performance, há, pela primeira vez no programa, um projecto que implica, de forma directa, a interacção entre artistas e espectadores. Scores for the Body, the Building and the Soul, For The Serralves Museum in Porto “vive da adesão dos visitantes a uma série de instruções, ou de partituras coreográficas, desenvolvidas pelo artista alemão David Helbich”, explicam os programadores. Esta tour-performance dialoga não só com a história das artes performativas, mas também com as particularidades arquitectónicas do Museu e do Parque de Serralves.

A relação umbilical de O Museu como Performance com a arquitectura de Serralves surge, de resto, reforçada nesta edição: Burn Time, de André Uerba, é uma performance-instalação em que a escultura, a coreografia e a arquitectura se contaminam, e em Livro: Poema-Livre, Sara Vaz e Marco Balesteros criam um desenho no espaço através de fios que são também emissores de som, num trabalho inspirado pela poesia experimental do recém-falecido E.M. de Melo e Castro.

Sugerir correcção