Direitos humanos e mortes evitáveis

Em vez da cruel proibição das visitas nos lares, deveria já ter sido considerada a exigência, sempre que possível, de os funcionários, habitual fonte de contágio, passarem, após testagem, a regime de exclusividade com internamento rotativo por equipas.

três meses comentei as incongruências que, desde início, acompanham esta pandemia em Portugal e noutros países desenvolvidos. Acreditava, porém, que após o “coma induzido” (Krugman) imposto aos cidadãos pela necessidade do combate a um desconhecido vírus, iríamos regressar rapidamente ao anterior respeito pelos Direitos do Homem, nomeadamente aos consolidados constitucionalmente no nosso país. Porque os nossos direitos, liberdades e garantias individuais, não são incompatíveis com a prevenção ou terapêutica de doenças infeciosas. Vou exemplificar, mas previamente partilhar uma teoria pessoal sobre a origem destes desvios morais que, a manterem-se, podem perigosamente ter um efeito de rampa deslizante em países democráticos.

A Organização Mundial da saúde (OMS) é uma organização de importância incontornável e tem um papel fundamental numa pandemia com imprevisíveis consequências. O principal objetivo desta organização é controlar o vírus e evitar os milhões de mortes que surgiram em anteriores pandemias. Contudo, para além de informações técnico-científicas, interpretadas pelos seus excelentes consultores, tem orientado os governos, através das respetivas autoridades de saúde, para modelos de controlo sanitário das populações que, não sendo os únicos, deveriam ter sido, em cada país, objeto de prévio parecer de eticistas, incluindo, no nosso, pelo Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida (CNECV).

Não me refiro, claro, ao afastamento social, à lavagem das mãos e à (tardia) recomendação do uso de máscaras, mas a muitas situações em que são escamoteados importantes direitos humanos, incluindo o respeito pela dignidade humana. Provavelmente, o que conduziu a OMS a elaborar modelos tão autoritários em nome do combate a uma infeção e a mortes evitáveis e retirada de adquiridos direitos individuais foi a necessidade da abrangência global das recomendações. Tradicionalmente, a OMS cria modelos de prevenção de doenças dirigidos a populações de países, como os africanos, governados por regimes ditatoriais e habituadas a obedecerem, como num rebanho, a todos os atos que lhe são impostos. São países em que os direitos humanos são diariamente ultrapassados e em que as populações, incapazes de decisão autónoma, podem ser localmente mal conduzidas. A maioria dos povos asiáticos tem igualmente regimes totalitários e características culturais e religiosas compatíveis com uma obediência acrítica. As medidas de prevenção desta pandemia foram talhadas para eles, os clientes habituais da OMS, mas não se adaptam a clientes ocasionais como nós. Dirigidas aos povos ocidentais, nomeadamente na Europa, as medidas poderiam e deveriam ter sido previamente avaliadas eticamente para não nos causarem o grande sofrimento e o retrocesso de direitos que estamos a enfrentar. Mas não foram.

Começo pela estratégia proposta para os lares. Sabemos que aí se encontra a população mais frágil porque, além da idade avançada e de co-morbilidades, está confinada em espaços fechados. Contudo, algumas mortes poderão ser evitadas se mudarem a estratégia adotada antes do Inverno. Em vez da cruel proibição das visitas, deveria já ter sido considerada a exigência, sempre que possível, de os funcionários, habitual fonte de contágio, passarem, após testagem, a regime de exclusividade com internamento rotativo por equipas. Estes profissionais, acumulando atividades em locais infetados, inclusive em hospitais, contagiando-se lá fora, mas também adoecendo por contágio de outros colegas e residentes, ao manterem-se dentro das residências ficariam também eles próprios e os seus familiares mais protegidos. Poderá afirmar-se que hoje não será legalmente possível manter estes trabalhadores confinados periodicamente, contudo, quando se exigiu que médicos e enfermeiros se mantivessem no local de trabalho, esta decisão não teria sido difícil de impor e teria salvo muitas vidas.

E, se esta estratégia passar a ser estimulada, em regime de voluntariado, o apoio financeiro da Comissão Europeia poderia contribuir para o novo regime de pagamento e eventual apoio social às famílias destes trabalhadores até ao fim da epidemia. A JAMA acaba de publicar os resultados da experiência francesa comparando os lares com este regime de internamento com aqueles em que este não existiu e confirmou a sua grande eficácia. A redução em França do número de infeções e mortes foi significativo. Para além da falta de eficácia, também a ausência imposta da presença de familiares deprime e abrevia a morte por outras causas. E, contudo, sabe-se que não é através dos parentes, que as infeções surgem. E, atualmente, com testes disponíveis, continuam os residentes a ser privados dos seus plenos direitos de ver a família como se a ida para um lar, mesmo quando não estão infetados, conduzisse a uma automática perda do respeito pelos direitos que lhes são devidos como seres humanos. E também se ignora o direito das famílias a estarem com eles. Quer haja, ou não, surtos nas residências. Também os infetados e as suas famílias devem manter sem interrupção o apoio humano não presencial que lhes é muitas vezes sonegado. Se não houver sensibilidade para se mudar totalmente a conduta nos lares, devemos preparar-nos para uma tragédia nos próximos meses potenciada pela habitual invernosa epidemia de gripe.

O “coma induzido” continua presente noutras áreas da saúde. Mantém-se, em centros de saúde e hospitais, o interrompido atendimento adequado das restantes patologias com reflexo dramático na morbilidade e mortalidade nacional. A obsessão pelo isolado combate ao SARS-CoV-2 é hoje um argumento que ainda colhe frutos. À falta de outro, é invocado frequentemente pelos funcionários administrativos, citando uma oportuna restrição ou modificação pela Direcão-Geral da Saúde (DGS), que não lhes permite o apoio solicitado. A DGS deverá rapidamente proibir este tipo de expedientes revendo e interrompendo normas já obsoletas.

O aumento de mortalidade verificada terá ainda a ver com a falta de acesso, mas também com outra norma cruel e só aceitável no início da crise – durante um internamento hospitalar, os doentes sem covid-19 deixaram de ter direito a visitas dos seus familiares, inclusive se estes forem previamente testados negativamente para o vírus. E é-lhes retirado este direito de ver a família até morrer. Por isso, quando se sentem gravemente doentes ou necessitam de apoio cirúrgico de resultados imprevisíveis, muitos portugueses recusam dirigir-se aos hospitais e decidem tratar-se ou morrer em casa. Não, responsáveis da saúde, não é, como afirmam, apenas pelo receio de se contagiaram, mas, principalmente, pelo temor de permanecerem e morrerem sozinhos, tal como os residentes dos lares.

Receávamos a insensibilidade da 4ª Revolução Industrial e os desígnios ambiciosos dos informáticos, ao substituir o tradicional apoio clínico por frias atividades à distância, mas, afinal, bastou um pequeno vírus para tudo se alterar. A falta da prática das tradicionais normas de ética na prevenção e terapêutica duma doença viral pandémica fez cair um edifício construído, pedra a pedra, ao longo dos últimos 50 anos e que privilegiava os direitos humanos e a autonomia do homem em todos os atos em saúde. Receio que não se volte a erguer nos próximos anos se, desde já, todos nós não o exigirmos.

A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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