A indignidade ética dos certificados de imunidade

Marcar pessoas por uma periclitante imunidade já teve muitas versões na história da humanidade e todas narram discriminação e exclusão.

Depois de um duro e longo confinamento, a ânsia de desconfinar era geral. Sabíamos que poderia aumentar o risco de infecção mas, até ao presente, não há sinais negativos, pelo que se anuncia a segunda fase do desconfinamento na próxima semana.

Também então os testes serológicos deverão ganhar dimensão nacional. Estes vêm a ser realizados há algum tempo, por diversas entidades, mas só agora se inscrevem num projecto de ampla cobertura da população. Os testes serológicos medem a presença de anticorpos contra um vírus, avaliando as defesas próprias no sistema imunitário de um indivíduo. Podem, pois, determinar se uma pessoa esteve em contacto com o coronavírus, mesmo que se tenha mantido assintomática. Quando os testes são realizados a uma população visam também avaliar a imunidade de grupo que, uma vez alcançada, permitiria que se passasse de uma situação pandémica para um estado endémico (semelhante a outras doenças infectocontagiosas). Muito há ainda que se desconhece, como a duração da imunidade adquirida. A OMS alerta também para a ausência de evidência científica que os pacientes covid-19 recuperados estejam totalmente imunes a nova infecção, além de haver relatos de recuperados que mantêm sintomas fortes da doença.

As incertezas incentivam a implementar o teste e a alargá-lo à população e ditam também os alertas de prudência na sua perspectivação que entidades responsáveis, como a DGS, têm repetido.

Não obstante, circula muita informação que converte os meritórios contributos das ciências biomédicas e das tecnologias digitais para um desconfinamento mais seguro, em pueris talismãs. Foi assim com a divulgação dos projectos científicos para criação da vacina cuja iminência prematuramente anunciada fazia crer que seria a solução para o desconfinamento. Tem sido assim com disseminação da ideia que o progresso tecnológico nos permite identificar todos os nossos contactos com infectados com o coronavírus, sem prejuízo para a privacidade pessoal. Está a ser assim com os testes serológicos perspectivados como certificação de imunidade e vulgarizados como ‘certificados livres de risco’ ou ‘passaporte da saúde’, numa política de linguagem tão hábil quanto eticamente ignóbil.

A desinformação reveste-se de diferentes roupagens. Por vezes aparece sob o signo do optimismo, como aconteceu com a vacina: havia que dar esperança às pessoas e servir interesses de algumas empresas de biotecnologia. Mas um optimismo infundado ou exacerbado infantiliza. Por vezes aparece sob o signo da simplicidade, como aconteceu com o rastreamento digital em aplicações móveis: havia que mostrar a capacidade da tecnologia arranjar soluções fáceis para situações difíceis e servir interesses de algumas empresas de tecnologia digital. Mas um simplismo ingénuo e acrítico é manipulador. Em ambos os casos, criam-se falsas expectativas, gera-se confusão, e corrói-se a confiança necessária no conhecimento científico e nas instituições que o desenvolvem. Por vezes também aparece sob o signo da eficácia, como ameaça acontecer com os testes de imunidade, propagandeados como cartas de alforria.

Quando falha a integridade ética da informação e da comunicação pelas entidades competentes, mas também quando falha a responsabilidade moral dos cidadãos de consultarem fontes fidedignas, assistimos impotentes a interpretações abusivas e utilizações arbitrárias da verdade dos factos, tal como acontece com as famosas “Festas covid" em que pessoas saudáveis convivem com infectados na expectativa de se infectarem também e na ilusão de que apenas ganharão imunidade, mas não os sintomas e os riscos associados à doença. Assistimos, estupefactos, ao aproveitamento manipulador de virtualidades biomédicas para desígnios indignos e esconsos de identificar as pessoas de acordo com o seu suposto nível de imunidade covid-19, conferindo a benesse da liberdade aos novos puros da sociedade e restrições de circulação aos demais, num regime de castas que supúnhamos incompatível com a democracia.

E não vale a pena enunciar os países que estão a ponderá-lo, como se o bem ou o correcto fosse decretado por maioria (aliás, inexistente nesta matéria); nem adianta invocar o peso de países que o ponderam, como se os maiores e mais poderosos tivessem mais razão. Marcar pessoas por uma periclitante imunidade já teve muitas versões na história da humanidade e todas narram discriminação e exclusão.

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