Mortes pela polícia no Rio de Janeiro baixam 76% com a proibição de entrar nas favelas

O choque provocado pela morte de várias crianças contribuiu para decisão do Supremo Tribunal Federal que limitou a acção policial a “casos excepcionais” durante a pandemia.

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O número de mortes fruto da violência policial estava a aumentar no Rio de Janeiro RICARDO MORAES/Reuters

A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de proibir as operações policiais nas favelas do Rio de Janeiro durante a pandemia de covid-19 resultou já numa enorme diminuição do número de mortes às mãos das polícias Militar e Civil. De 348 mortes em Junho e Julho de 2019 passou-se para 84 no mesmo período deste ano (menos 76%), indicam os dados divulgados esta terça-feira pelo Instituto de Segurança Pública da metrópole brasileira.

Quando se compara apenas o mês de Junho – a decisão assinada pelo juiz federal Edson Fachin é de 5 de Junho – a queda ainda é maior: 78%, baixando de 153 para 34 pessoas mortas por agentes do Estado.

A proibição decretada há quase três meses deixa espaço para “casos absolutamente excepcionais” que “devem ser devidamente justificados por escrito pela autoridade competente e comunicados ao Ministério Público estadual”, que tem a cargo o controlo externo das polícias.

Algumas operações realizadas em Maio, já com os moradores das favelas encerrados em casa por causa da pandemia, e, por isso mesmo, mais vulneráveis aos confrontos entre polícia e gangues, provocaram uma série de mortes suspeitas, incluindo a de várias crianças.

O caso com maior repercussão foi o de um rapaz de 14 anos baleado dentro de casa durante uma operação das polícias Militar e Civil para combater o tráfico de droga. O adolescente do Morro do Salgueiro, no município de São Gonçalo, foi atingido com pelo menos 70 tiros.

“Nada justifica que uma criança de 14 anos seja alvejada mais de 70 vezes”, defendeu na altura o juiz Fachin. Esta morte, escreveu, mostra que “por si só, mantido o actual quadro normativo, nada será feito para diminuir a letalidade policial, um estado de coisas que em nada respeita a Constituição”.

A decisão do juiz do STF foi tomada depois de o Partido Socialista Brasileiro (PSB) questionar junto da Justiça a política de segurança pública do governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, acusando-o de estimular o conflito armado e de expor as populações das zonas mais afectadas pela violência (incluindo a policial) a “profundas violações dos seus direitos humanos”.

Novas restrições

Depois da primeira decisão de Maio, já a semana passada, a maioria do STF confirmou a imposição de novas restrições à actuação da polícia na região. Entre outras regras, o Supremo decidiu que a utilização de helicópteros, muito frequente, só poderá fazer-se em casos de “estrita necessidade”, o mesmo limite imposto a acções próximas de escolas ou postos de saúde.

Quando há suspeitas de envolvimento da polícia em crimes, ficou também decidido, será sempre o Ministério Público a realizar a investigação, ficando os agentes de segurança e profissionais de saúde obrigados a preservar todos os vestígios de ilegalidades. O julgamento aberto com a queixa do PSB ainda não terminou.

A Polícia Militar queixa-se da diminuição no número de criminosos presos e de armas apreendidas verificados com a diminuição das operações no estado do Rio de Janeiro e diz ver com “extrema preocupação a restrição” das operações “em territórios disputados entre grupos de criminosos”.

Crime não aumenta

Daniel Hirata, professor de Sociologia especialista em violência provocada pelo Estado, questiona o “discurso, bastante generalizado entre as polícias,” que descreve “as operações como inevitáveis para o controlo do crime” e diz ao site G1 da Globo que o período sem operações não provocou um aumento de outra criminalidade. “A gente começa a perceber que a preservação da vida não se opõe ao controlo do crime”, nota.

O ano passado ficou marcado por um aumento significativo do número de pessoas mortas por polícias no Rio de Janeiro, o maior número desde 1998, quando o Instituto de Segurança Pública começou a compilar dados. Um estudo do Centro de Pesquisas do Ministério Público do Estado, divulgado em Setembro, sublinhava ainda que o aumento do número de mortes em acções policiais não tinha relação directa com a redução da criminalidade.

No conjunto, estes dados tinham já dado força aos críticos e alimentado o debate sobre as políticas de “tolerância zero” em relação aos crimes nas favelas, defendidas por Witzel e pelo Presidente brasileiro, Jair Bolsonaro.

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