Dia 79: Podemos não admirar os nossos filhos?

Uma mãe/avó e uma filha/mãe falam de educação. De birras e mal-entendidos, de raivas e perplexidades, mas também dos momentos bons. Para avós e mães, e não só.

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@DESIGNER.SANDRAF

Ana,

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Estive a pensar e concluí que metade (ou mais) das guerras que temos com os nossos filhos são provocadas pelo medo de que aquele comportamento que odiamos, aquele traço de personalidade que nos desespera, se tornem definitivos. Por outras palavras que se transformem em adultos que não admiramos, ou pelo menos não admiramos tanto quanto queríamos.

Não estou a falar naquela obsessão de que realizem os sonhos que deixámos pelo caminho, seja o de ser o Cristiano Ronaldo ou um neurocirurgião de topo, mas de “defeitos” de carácter de que não só não gostamos como, ainda por cima, acreditamos que não os levam a nada de bom. Queres exemplos? A mentira, o amuo, a falta de persistência, um temperamento explosivo ou, pelo contrário, demasiado passivo, a lista podia continuar interminável.

Na verdade, estamos perfeitamente convencidos de que se não agirmos a tempo e horas, se não os “educarmos”, vão transformar-se em hooligans, qualquer coisa como de “pequenino é que se torce o pepino”. Será que devíamos estudar o desenvolvimento das crianças e dos adolescentes, para perceber melhor o que são “fases”, para mais tranquilos deixarmos que a “fase” passe? Devíamos confiar mais em nós, como pais, acreditando que o que semeámos vai acabar por florescer? Ou acreditar mais na espécie humana, porque afinal sabemos por experiência própria que à medida que crescemos e amadurecemos vamos fazendo esse caminho, influenciados pelas pessoas que nos rodeiam, de olhos postos no exemplo daqueles que escolhemos como modelo, mas basicamente num esforço individual de tentativa e erro. Afinal, não precisamos de ser postos a um canto da sala com orelhas de burro, para perceber que somos mais felizes quando conseguimos ser pessoas melhores.

Ana, estás a perceber o que estou a perguntar? Haja alguém, porque pressinto que não estou a ser tão clara como queria. Preciso do teu feedback.


Querida Mãe,

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Não tenho dúvida nenhuma que a maior parte das guerras com os nossos filhos vêm do medo. E normalmente de uma catastrofização do futuro. Desde os primeiros dias de vida que o medo incutido por toda a gente à nossa volta e que nos toma os pensamentos não é um “Oh meu Deus, ele está a adormecer ao meu colo, que horror”, mas antes um “Oh meu Deus estou a adormecê-lo ao colo e assim ele nunca vai adormecer sozinho.” Ou “Se usa fralda depois dos dois anos nunca vai largar a fralda.” Ou “Chamou-me estúpida, e como não o castiguei por isso, ele nunca vai aprender a auto-controlar-se”.

Faríamos bem melhor em olhar para trás e listarmos a quantidade louca de profecias dramáticas que não se realizaram! Mesmo quando não fizemos nada por isso. É um bom exercício porque traz consigo a liberdade de vivermos o que está a acontecer no presente. O mini E., por exemplo, diz “pair” em vez de “cair”. Nas gémeas já teria corrigido. Agora delicio-me cada vez que o diz, já com saudades, porque sei que um destes dias, quando eu menos esperar, lá vai estar o “c”. É um exemplo insignificante, eu sei, mãe, mas na maior parte dos casos, os miúdos ultrapassam naturalmente as suas fases difíceis ou aquilo que nós consideramos ser “inaceitável”.

Mas se o assunto de que quer falar são as “características” ou os “defeitos” das crianças, isso é todo um outro filme. Primeiro, suspeito que um defeito que “nos tira do sério” nos nossos filhos tem uma probabilidade forte de existir também em nós (!), por isso, acho que pode ser útil perceber por que nos exaspera tanto! Depois, já agora, convém confirmar se é um “defeito” para a vida ou só para a “vida que eu gostava de ter agora mesmo”. Repare como é curioso ouvir pais a refilar porque o filho é “determinado e não se cala com o mesmo assunto”, para noutro momento incluírem no seu CV que são “persistentes, com um interesse inesgotável por x , levando sempre a missão até ao fim”.

Daqui, estou a conseguir ouvi-la a refilar: “Então a educação não serve para nada?” Acredito que serve, mas continuo também a acreditar que o comportamento da criança — e o de todos nós — é uma forma de comunicação. Se está a mentir ou a amuar não é porque é uma “mentirosa” ou uma “amuadinha”, mas porque existe um obstáculo qualquer no seu caminho que não está a conseguir enfrentar. E aí, o que nós pais temos a obrigação de fazer é escutá-la, perceber (não é sinónimo de aceitar), e ajudá-la a procurar soluções. Porque acredito que nenhuma criança que esteja bem quer mentir, amuar, gritar, bater ou chamar nomes.

Como diz Stuart Shanker, professor e investigador emérito de Filosofia e Psicologia na Universidade de York: “Olha para a criança de uma forma diferente e verás uma criança diferente.”

Beijinhos!


No Birras de Mãe, uma avó/ mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, vão diariamente escrever-se, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. Na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam. Facebook e Instagram

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