Baba-de-camelo, a sobremesa portuguesa que tem o nome mais estranho do mundo

Honra seja feita a Valentina, dona de casa de Lisboa que na primeira metade do século XX se arranjou como pôde para criar uma sobremesa de última hora com os ingredientes que tinha em casa. De então para cá, a baba-de-camelo continua a figurar à mesa dos portugueses e nas ementas dos restaurantes.

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A baba-de-camelo tornou-se um dos doces mais populares em Portugal Nelson Garrido

A baba-de-camelo deve ser a sobremesa com a designação mais estranha do mundo. Não há rivais dignos de tal fama. Os brasileiros têm a sua baba-de-moça, é verdade, mas é um nome uns degraus abaixo na pirâmide da estranheza, se ela existisse. Diga-se a título de curiosidade que, exceptuando o primeiro termo da designação, os dois doces em nada se parecem, sendo o da terra do samba uma adaptação dos conventuais ovos-moles de Aveiro, acrescido de um ingrediente que lhe confere fresca tropicalidade – o leite de coco. Diz-se ter sido o doce preferido da Princesa Isabel do Brasil, filha do Imperador D. Pedro II.

Os ingleses têm o famoso Eton mess (literalmente salgalhada, boldreguice, confusão, desordem ou sujeira), uma sobremesa criada no famoso colégio do mesmo nome e que consiste numa mixórdia de morangos – ou outros frutos de Verão –, merengue desfeito e natas batidas. Reza a história que terá sido inadvertidamente inventada quando uma pavlova preparada para abrilhantar o desfecho do tradicional jogo de críquete entre os alunos de Eton e os de Harrow terá caído, desmanchando-se (uma outra versão mais rebuscada, mas mais divertida, vinda a lume nos anos trinta, traz-nos um labrador travesso que se senta em cima do cesto com a referida pavlova, esborrachando-a irremediavelmente). Os rapazes não se terão feito rogados e atiraram-se com unhas e dentes ao doce desconstruído, tornando-o um clássico desde então. Contudo, como havia já surgido em publicação em 1893, esta última versão não passará de um mito urbano. Ou colegial.

Um Eton mess fotografado em Londres Suzanne Plunkett/Reuters
Um dulce de leche da Estancia El Rosario, La Cumbre (Argentina) DR
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Um Eton mess fotografado em Londres Suzanne Plunkett/Reuters

Mas talvez seja mesmo o nosso país aquele que se revela mais pródigo na denominação do mundo das coisas doces. Se o nosso objecto de estudo fosse a doçaria conventual, teríamos uma panóplia infindável de nomes, que fazem as delícias (leia-se aqui em duplo sentido) dos estrangeiros quando se apercebem do seu significado. Papos-de-anjo, barrigas-de-freira, toucinho-do-céu e outros bem mais apimentados, nos quais me não deterei, porquanto não seja o universo das especiarias aquilo de que vim falar.

Baba-de-camelo é, sem sombra de dúvida, o nome mais inesperado, insólito e estranho para uma sobremesa alguma vez inventado. Honra seja feita aos portugueses, criadores tanto da famosa sobremesa como do seu esquisito nome.

Aludindo aos ingleses e sua capacidade imaginativa, poderíamos aqui paralelamente invocar um argumento rebuscado para a génese do nome, relacionando o simpático animal e outra das suas secreções com algo inesperadamente belo e precioso, desta feita do mundo da mineralogia. De facto, acreditou-se durante séculos que a famosa formação rochosa de cristais rosa-do-deserto proviria da urina petrificada do camelo. Uma pedra semipreciosa criada a partir de uma realidade tão prosaica como repugnante. Será que também a saliva do animal poderia ser miraculosamente transformada numa coisa sublime, um manjar dos deuses?

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Baba-de-camelo Nelson Garrido

A verdade é que, se para um português o nome da sua sobremesa está de tal forma interiorizado que suscita poucos ou nenhuns esgares ou levantares de sobrancelha, se o traduzirmos (acontece não poucas vezes nos restaurantes) como “camel’s drool” – ou até mesmo “camel’s spit”, como por vezes se vê! – e “bave de chameau”, as reacções do turista estrangeiro podem ir do gáudio ao nojo.

Como foi então baptizada uma sobremesa com um nome tão cómico quanto controverso?

A invenção da dona Valentina

Também nós, portugueses, temos mitos urbanos para mil e uma realidades, e esta não é excepção.

Conta-se que, no final da primeira metade do século XX, uma dona de casa, a senhora dona Valentina, recebeu inesperadamente uma série de convidados para jantar. Quando cogitava que sobremesa apresentar, ter-se-á apercebido da escassez de ingredientes na despensa. À falta de uma Uber-Eats, arranjou-se como pôde, à boa maneira do desenrasque luso. Nem tempo nem ingredientes eram de sobra, pelo que a imaginação teria forçosamente de ser posta à prova.

Chegada a hora da sobremesa, e temendo que o doce preparado não chegasse para todos os comensais, tê-lo-á anunciado como “baba-de-camelo”, na esperança que alguns, dada a designação, se abstivessem de provar, o que parece ter de facto acontecido. Mas reza a lenda que os que provaram se deleitaram com a invenção gastronómica da criativa senhora. Mito urbano? Não se sabe. Mas é tão delicioso quanto o sabor da sobremesa que lhe deu origem.

Então e o que tinha naquele dia dona Valentina nas prateleiras da sua despensa e, eventualmente, do seu frigorífico? Meia dúzia de ovos e uma lata de leite condensado açucarado. Apenas. Ah!, e, naturalmente, criatividade q.b.

Bolacha Maria não tinha certamente: com ela poderia ter confeccionado um maravilhoso bolo de bolacha perfumado com café, mas tal não seria receita sua (como vimos noutro artigo na Fugas), ou até inventado uma sobremesa nova, mas diferente da sua, incorporando as bolachas a natas batidas e à lata de leite condensado de que dispunha. Mas aí estaríamos a falar de outra coisa e dona Valentina teria então trazido ao mundo a também portuguesíssima serradura.

E já havia leite condensado em Portugal à época?

A resposta é – naturalmente – sim.

A dificuldade em conservar o leite fresco por muitas horas aguçara o engenho do americano Gail Borden Jr que, durante a viagem de regresso à Exposição Universal de Londres, em 1851, viu morrer no navio diversas crianças com leite contaminado. Chocado com o facto e inspirado pelo mesmo, acabou por inventar e patentear, dois anos mais tarde, o processo de redução do precioso líquido (extraindo-lhe cerca de 60% da sua composição de água), açucarando-o e enlatando-o a vácuo. O leite mantinha assim as suas propriedades e dispensava a refrigeração. A invenção tornar-se-ia um sucesso, tornando-se ainda mais vital aquando da Guerra Civil Americana, quando passou a fazer parte da ração de combate dos soldados unionistas, proporcionando-lhes umas muito bem-vindas 1300 calorias por lata, contendo 28 gramas de proteína, 28 gramas de gordura e 200 gramas de hidratos de carbono. Nessa altura, a sua fábrica de Nova Iorque produzia 76.000 litros de leite condensado por dia!

Anúncio na Revista Panorama, nº duplo 36/37 (1948)
Revista Panorama nº 17 (1943)
Revista Panorama nº 23 (1945)
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Anúncio na Revista Panorama, nº duplo 36/37 (1948)

Em Portugal, temos registos de produção deste produto ainda durante a primeira metade do século XX, quer pela companhia Martins & Rebello, Lda. (criada em 1906 e sediada em Vale de Cambra, no distrito de Aveiro, mais conhecida pela produção de manteiga e queijo), quer pela Sociedade de Produtos Lácteos, Lda. (criada em 1923 em Avanca, Estarreja, e que dez anos mais tarde obteria a exclusividade da produção e venda dos produtos Nestlé no nosso país, tendo como principal sócio o já famoso e futuramente laureado professor Egas Moniz).

Assim, a nossa já conhecida Valentina teria numa das suas prateleiras pelo menos uma lata de leite condensado Primor (produto da Martins & Rebello, Lda.), Moça ou Nestlé (ambos produtos da Sociedade de Produtos Lácteos, Lda.), que criativamente decidiu cozer durante 30 a 40 minutos na panela de pressão. Se o tivesse feito num tacho normal, o processo teria levado um bom par de horas. Quando abriu então a lata, o conteúdo apresentava uma consistência espessa e acastanhada.

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Nelson Garrido

Esta consistência, aliada a um sabor aproximado a caramelo, tornaria o resultado consideravelmente aparentado com os famosos confiture de lait francês e dulce de leche latino-americano, que se obtêm pacientemente levando ao lume e mexendo sempre leite e açúcar, o que leva progressivamente à evaporação de água e ao espessamento e apuramento do preparado. O processo de caramelização e a reacção de Maillard têm lugar e o doce final surge então, pronto para ser comido à colher, barrar pão ou crepes, rechear bolos ou churros ou ainda acompanhar queijo fresco, conforme a região do mundo em que nos encontremos.

Mas quando terá finalmente surgido em publicação a baba-de-camelo e, portanto, a sua divulgação oficial?

A popular revista Tele Culinária e Doçaria, criada para acompanhar o programa televisivo apresentado pelo famoso chefe Silva e surgida nas bancas em Outubro de 1976, apresentou a sua primeira versão da sobremesa há quarenta anos, no número 131, a 19 de Julho de 1979, numa receita enviada por uma leitora de Lisboa. A segunda entrada far-se-á a 5 de Novembro de 1990, no número 612, também proposta por uma leitora da capital.

Receita na Teleculinária em 1979
Uma receita na Banquete em Julho de 1961
Uma receita na Banquete em Julho de 1961
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Receita na Teleculinária em 1979

Todavia, a sobremesa já tinha feito a sua aparição muitos anos antes, numa outra revista de culinária, a mais antiga e já desaparecida Banquete (1960-1974), que tinha chancela do Gás Cidla e direcção de Maria Emília Cancella de Abreu. Surge no número 17 (Julho de 1961).

Para além de se afiançar ser uma receita económica, as duas publicações apresentam outra particularidade comum, e assaz curiosa. De facto, nem uma nem outra apelidam a sobremesa de “baba-de-camelo”. Considerariam o nome, que corria já oralmente o país de lés-a-lés, pouco digno de figurar nas suas páginas? Quereriam rebaptizar o doce, conferindo-lhe mais seriedade? Ou não desejariam desencorajar o leitor, como o fizera a dona Valentina com alguns dos seus convidados?

Assim, temos em ambas as revistas a mais elegante e afrancesada denominação “mousse de caramelo de leite” (Banquete) e “mousse de leite condensado” (Tele Culinária e Doçaria), a que não será alheio o facto de a receita incorporar claras batidas em castelo, tornando-a mais leve e fofa do que os doces de leite supramencionados.

O povo, contudo, manter-se-ia fiel ao singular nome e a iguaria, de babar e chorar por mais, continuaria a figurar como baba-de-camelo nas bocas e mesas dos lares e restaurantes portugueses.

Doce e peganhenta, como é seu apanágio. A sobremesa. A baba do camelo não chegámos a provar.

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