Histórias da Construção Europeia [1/6]: A União da França e da Grã-Bretanha em 1940

Sendo hoje tão relevante para nós a participação na Europa, faz sentido sabermos um pouco mais sobre como tudo surgiu. Primeiro de seis textos da série “Histórias da Construção Europeia”, do economista José Veiga Sarmento, que publicaremos diariamente nos próximos dias.

A União Europeia é para nós, Portugueses, um elemento crucial das nossas vidas e do nosso futuro. O amadurecimento da vida em democracia e a quebra do nosso isolacionismo físico e mental resultam da participação no funcionamento das Instituições Europeias. Os ganhos na nossa qualidade de vida são, em grande parte, o produto da utilização de instrumentos e recursos comunitários. No entanto, o processo que levou à criação das Instituições Comunitárias e o seu aprofundamento não pertence ao nosso imaginário.

Enquanto decorriam, nos anos 50, as movimentações políticas para a criação do que veio a ser a União Europeia, nós, Portugueses, estávamos noutro mundo, o mundo das colónias que outras potências já tinham, entretanto, perdido ou estavam em vias de perder. O nosso era um mundo sem liberdades individuais e sem vida política plural. Os nossos vizinhos geográficos eram os nuestros hermanos de quem desconfiávamos e que tínhamos, na escola, aprendido a odiar. A recordação da horrível violência e da terrível destruição em consequência da Segunda Guerra Mundial que levou os povos da Europa Central a entenderem-se não nos dizia muito e era algo longínquo. Salazar tinha tido a habilidade e a coragem de nos poupar, abafando o espírito belicista que, na altura, também estava na moda em Portugal.

Sendo hoje tão relevante para nós a participação na Europa, faz sentido sabermos um pouco mais sobre como tudo surgiu. Estes textos vão percorrer, ao de leve, a memória de um dos principais obreiros deste processo, Jean Monnet, que não vai poder assistir à nossa entrada na sua obra pois morre em 1979, aos 90 anos.

A nossa convivência europeia vai-nos transformar e fazer com que sejamos hoje muito diferentes do que éramos há 40 anos. Os espanhóis passaram de inimigos que se temem, admiram ou odeiam, para vizinhos e parceiros. A juventude portuguesa nasce com o direito adquirido do passaporte Erasmus, que lhes permite amadurecer o seu conhecimento do Mundo em freguesias distantes e organizar as suas vidas onde melhor lhes apraz. Longe vão os tempos em que o orgulho nacionalista lusitano, inspirado ainda há poucos anos por Manuel Monteiro e muitos outros, nos mobilizava para a primazia da nação e para a obrigação de nos defendermos da Europa. Lentamente, fomos aprendendo que a nossa verdadeira independência está no que fazemos das nossas vidas. Hoje sabemos que o fim da Europa seria para Portugal um choque sísmico difícil de digerir.

Nestas seis pequenas crónicas vamos recordar alguns dos momentos críticos deste processo, através essencialmente do olhar e da memória de Jean Monnet. Sendo o legado escrito de Jean Monnet uma leitura pessoal da História, nem todas as situações por ele descritas teriam o mesmo significado se relatadas por outros. Mas o pormenor da descrição que ele nos faz das personagens e dos factos deixa pouco espaço a uma invenção de raiz. Vamos passar em revista alguns dos momentos mais curiosos que, se não tivessem corrido como correram, fariam com que vivêssemos hoje num mundo muito diferente, mais inseguro, menos livre e seguramente menos democrático. E para melhorar a nossa percepção sobre o que é a questão europeia, creio que vale a pena ver o filme desde o seu princípio.

Foto
Jean Monnet (1888-1979) DR/Europe1

Começamos por um episódio não muito conhecido, que não teve sequer sequência, mas que revela a necessidade de união que irá só poder ser concretizada no pós-Guerra. Foi um epifenómeno que ocorreu há 80 anos (16 de Junho de 1940) quando Winston Churchill, primeiro-ministro britânico desde 10 de Maio, e Paul Reynaud, primeiro-ministro francês desde 21 de Março, acordaram em fazer a proclamação da União Franco-Britânica, uma nova nação, que juntaria as suas forças para lutar pela liberdade na Europa, fazendo frente ao totalitarismo nazi. Na altura, relembra-se, o exército alemão avançava, vitoriosamente, sobre a França e o Governo francês havia-se refugiado em Bordéus onde iria, dentro de poucos dias, aceitar a rendição.

Esta declaração de fusão transnacional resultou da acção de Jean Monnet que, na altura, dirigia, em Londres, o Gabinete conjunto Franco-Britânico de abastecimento militar para a Guerra. Esta declaração tão solene e dramática foi uma tentativa desesperada de impedir a capitulação da França. O objectivo era o de criar uma nova entidade, resultante da fusão pura e simples das duas nações, já que estas em separado não tinham condições de fazer frente aos desafios. O texto da Declaração foi redigido, em grande parte, por Jean Monnet, Charles De Gaulle e Robert Vansittart, diplomata inglês, contando ainda com o contributo de vários membros do Governo inglês. Dizia assim:

“Nesta hora tão grave na História do Mundo Moderno, o Governo do Reino Unido e da República Francesa declaram-se indissoluvelmente unidos e inabalavelmente resolutos para defender, em conjunto, a justiça e a liberdade contra a submissão a um sistema que reduz a humanidade à condição de robots e de escravos.
Os dois Governos declaram que a França e a Grã-Bretanha não serão no futuro duas nações, mas uma só, a União Franco-Britânica.
A Constituição da União compreenderá as organizações comuns de defesa, política externa e assuntos económicos.
Todos os cidadãos franceses gozarão imediatamente da cidadania da Grã-Bretanha e todos os súbditos britânicos serão igualmente cidadãos de França.
Os dois países suportarão em comum os prejuízos da guerra, independentemente do sítio onde acontecerem, e os recursos de uns e de outros serão igualmente e como um todo, empregados para esse efeito.
Durante o curso da Guerra só existirá um Gabinete de Guerra e todas as forças da Grã-Bretanha e da França, seja na terra, no mar ou nos ares, ficarão colocadas sob a sua direcção. (...)
Os dois Parlamentos serão fundidos oficialmente. (...)
A União concentrará todas as suas energias contra o poder do inimigo, onde quer que aconteça a batalha.
E, assim, nós venceremos.”

Apesar da concordância de Reynaud, esta Declaração teve a forte oposição do então vice-primeiro-ministro Philippe Pétain, pelo que acabou por não ganhar o apoio da maioria do Governo francês. Reynaud demite-se nessa mesma tarde e Pétain foi a seguir mandatado para assinar o armistício de rendição. A França será dividida numa zona de ocupação alemã e numa França fantasma, teoricamente governada por Pétain em Vichy. De Gaulle, sub-secretário da Guerra e que se recusava a aceitar a derrota, tinha-se já dirigido para Londres onde irá manter-se para apelar à resistência. Monnet será enviado a seguir por Churchill para os Estados Unidos, como representante do Governo inglês para negociar o abastecimento militar.

Esta primeira tentativa de Jean Monnet de construção política de uma Europa Unida falhou. As prioridades agora vão ser outras. Com a sua ida para Washington em 1940 (antes, pois, de Pearl Harbour), Monnet actua como conselheiro de Roosevelt, junto de quem impulsionou o gigantesco programa de construção de material de guerra que seria utilizado pelos aliados para vencer o regime nazi. A sua actividade de planeamento, promovendo a produção dos recursos militares necessários para a vitória, teve, segundo Keynes, uma influência directa no resultado da guerra.

Quando, em 1944, a França é libertada, Monnet regressa à pátria e cria o Comissariado Francês do Plano onde os principais investimentos industriais da França das décadas seguintes serão delineados. A economia francesa vai passar a viver ao ritmo dos Planos. Só depois de instalada esta “engrenagem” – como era chamado o processo de planeamento – é que Monnet vai poder dedicar-se à unificação política da Europa, o sonho da sua vida e o meio de acabar com os séculos de guerra civil do nosso continente. Nos textos seguintes iremos olhar para alguns dos momentos mais importantes deste percurso.

Mas em 1940, cinco anos antes de conseguida a paz, Jean Monnet, como aliás todos os seus contemporâneos, vai percorrer o caminho da guerra imposto pelos nazis, que irá destruir a Europa física e moralmente, marcando a história da Humanidade com a prática do assassínio numa escala e num rigor industrial nunca antes vistos.

Esse será o objecto do nosso próximo capítulo.

Escrito a partir das memórias de Jean Monnet

Próximo artigo desta série: Um francês na Casa Branca

Sugerir correcção