Histórias da Construção Europeia [2/6]: Um francês na Casa Branca

Em 1940, cinco anos antes de conseguida a paz, Jean Monnet vai percorrer o caminho da guerra imposto pelos nazis, que irá destruir a Europa física e moralmente. Segundo de seis textos da série “Histórias da Construção Europeia”, do economista José Veiga Sarmento, que publicamos diariamente nestes dias.

Em Londres desde 1939, Monnet chefiava na altura a Comissão conjunta Franco-Britânica para a aquisição de armamento, comissão essa criada pelos dois governos (mas por si inspirada), para que não se repetissem os erros de descoordenação dos Aliados no início da Primeira Grande Guerra.

Vencida a França em Maio de 1940, Jean Monnet dá por extinto, no dia 2 de Julho de 1940, o Comité Franco-Britânico a que presidia e coloca as suas qualidades de negociador e organizador ao serviço do Governo britânico. Por decisão de Churchill, em finais de Agosto de 1940, Jean Monnet irá para Washington trabalhar para o programa inglês de compras de material de guerra. A Inglaterra havia ficado sozinha frente aos alemães e as suas necessidades de material bélico eram avassaladoras.

Este emissário que Churchill envia para Washington era muito particular. Apesar de ser francês, Monnet conhece bem os Estados Unidos, onde foi banqueiro de sucesso, estando mesmo na origem da criação do Bank of America de São Francisco. É amigo pessoal de importantes políticos norte-americanos, como John Fuster Dulles, e conhece bem Roosevelt, com quem vinha tratando do fornecimento de armas aos Aliados através do seu Comité Franco-Britânico. Apoiar os Aliados não era, porém, uma tarefa fácil para Roosevelt, pois a opinião pública na América estava maioritariamente contra a participação em mais uma guerra da Europa. À opinião pública aliavam-se também personagens muito populares (e com simpatias nazis), como o aviador Lindbergh, um grande herói nacional. Apesar destas dificuldades, Roosevelt já tinha explicado a Monnet que, embora legalmente impedido de o fazer, estava decidido a encontrar formas de ajudar a salvar a democracia na Europa. Para Roosevelt, a liberdade na América não faria qualquer sentido se isolada num Mundo dominado por ditaduras obscurantistas e assassinas. Sem nunca afrontar o Congresso e a opinião pública, esperou pacientemente por uma oportunidade que veio a acontecer quando conseguiu que o Senado abolisse, em Novembro de 1939, o “Neutrality Act”, o que lhe permitia iniciar a exportação de aviões e de tanques para os Aliados na Europa.

Foto
Franklin D. Roosevelt e Winston Churchill DR

Monnet, trabalhando com o secretário do Tesouro Morgenthau, e sempre com o apoio directo de Roosevelt, vai encontrando formas de financiar as aquisições – que estimava imensas – de aviões, barcos, tanques e Jeeps que, na altura, a Inglaterra não tinha meios para pagar. A regra nos EUA para a venda de material de guerra era a do “cash & carry” e o problema era que Monnet dizia que mais valia dez mil tanques a mais do que um só a menos. Resolvidas as formas de financiamento, a lei “Lend Lease”, Monnet passa a pressionar insistentemente o aumento da capacidade de produção americana, o que vai obrigar à utilização das fábricas de automóveis e inclusive a medidas de racionamento. Para Roosevelt, vencer os nazis era um objectivo central a que vai dedicar toda a sua energia, mas mantendo sempre uma jovial e generosa capacidade de comunicação para com os seus concidadãos.

Como sabemos, só após o ataque inesperado de Pearl Harbour pelos japoneses é que a América de Roosevelt vai poder entrar na guerra pela libertação da Europa com todo o seu poderio económico e militar, e também com a clareza e a força da sua liderança política. Não fosse Roosevelt e a sua determinação, e a História teria sido muito diferente. Talvez a Europa falasse hoje alemão, com a super poderosa Gestapo a fazer uso de computadores quânticos e de chips embutidos nos cérebros dos súbditos, enquanto Hitler teria definitivamente assumido o papel de entidade divina. As mentiras de Goebels teriam deixado de ser mentiras, sendo cristalizadas numa nova religião que os povos da Europa honrariam com fervor. Goebels afirmava com orgulho que o povo não se interessava pela verdade, mas que seguia com gosto as mensagens simples. Mensagens que é necessário repetir muitas, muitas vezes. Neste exercício de futurologia que nos levaria ao Terceiro Reich no século XXI, imaginar até onde teria ido a sanha assassina de exterminação de povos e adversários na hipótese dos nazis não terem perdido a guerra, é um exercício impossível para um ser humano normal. Graças a Roosevelt, não foi isso que aconteceu.

Quando o Japão destrói a Armada americana em Pearl Harbour em Dezembro de 1941 e a Alemanha, por solidariedade com o Japão, declara guerra à América, já Monnet usufruíra de um ano para construir o plano de produção de armamento – conhecido como o “Victory Program” – que multiplicava por vários factores a quantidade de material de guerra que os militares pensavam que seria necessário. A imediata resposta americana de mobilização de recursos após Pearl Harbour só vai ser possível graças ao trabalho de planificação entretanto feito por Monnet. Este crucial tempo ganho é sublinhado por Keynes e mais tarde por Kissinger, quando reconhecem o mérito e a influência de Monnet no resultado da Guerra.

Mas o papel de Monnet, aquando da preparação do desembarque na Normandia em 1944, vai ser, novamente, preponderante, quando se enfrenta com um acontecimento inesperado: é que a Administração americana, que não aceitava o franco francês por não reconhecer como legítimo o Governo de França, mandara preparar para o desembarque a introdução de uma nova moeda em substituição do franco, consubstanciada em notas com a designação de “Allied Military Command”. Monnet, De Gaulle e outros vão interceder junto de Roosevelt para evitar mais esta humilhação à sua Pátria. Apesar destas intervenções, os americanos desembarcam com os caixotes de notas. Graças a Monnet, o conteúdo dos caixotes nunca será utilizado.

Este resumo dedicado à guerra só aparentemente não tem nada a ver com a história da União Europeia. De facto, a intervenção americana e a destruição do império nazi é, sem sombra de dúvida, o verdadeiro capítulo fundador da Europa Democrática, unida pela vontade de garantir a liberdade e o desenvolvimento económico para os seus cidadãos. É um mito dizer que os americanos nunca quiseram a Europa unida (antes de Trump, claro). Para Roosevelt, a Europa – mas uma Europa sem guerras fratricidas – era o parceiro natural, o parceiro com quem partilhava a visão do Mundo. E é ainda a América que, através de Truman e do seu ministro dos Negócios Estrangeiros, o general Marshall, vai levantar em 1948 um gigantesco plano de ajuda ao constatar a difícil situação da Europa no pós-Guerra.

Havia, no entanto, uma condição: a Europa teria de encontrar uma forma de se organizar para gerir conjuntamente essa ajuda e é assim que nasce o que viria a ser a OCDE. Não se pense que foi fácil convencer o Congresso e a opinião publica americana da necessidade de intervenções tão generosas. Conta-se que, aquando da apresentação das ajudas à Grécia e à Turquia, os congressistas americanos só aplaudiram quando Truman referiu a parte dessa ajuda que iria ser paga com juros. As ajudas do Plano Marshall deram à Europa condições de recuperação em democracia, num quadro que privilegiava a concertação entre os países. Como viria a dizer mais tarde Helmut Schmidt, a União Europeia só foi possível graças ao Plano Marshall.

Mas não era apenas a Administração americana que favorecia uma união europeia. O próprio Churchill partilhou da mesma convicção e por ela continuou a militar a seguir à Guerra. No entanto, o princípio de solução só viria mais tarde, lentamente e aos soluços, com avanços e recuos, até ao ponto onde estamos hoje.

Esse arranque será o objecto do próximo capítulo.

Escrito a partir das memórias de Jean Monnet

Próximo artigo desta série: 9 de Maio de 1950, o primeiro passo para a União da Europa

Sugerir correcção