Brasil: saídas e bandeiras

Bolsonaro, seus filhos e seu chamado “gabinete do ódio” — com bots e influenciadores reaccionários que promovem fake news e assassinatos de reputações — personificam o gaslighting do obscurantismo.

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LUSA/JOEDSON ALVES

As incipientes frentes unidas pró-democracia no Brasil e actos de rua declaradamente antifascistas que desafiam a escalada abertamente autoritária de Jair Bolsonaro fazem-me pensar nos versos de Milton Nascimento e Fernando Brant em Saídas e bandeiras:

“Andar por avenidas enfrentando o que não dá mais pé
Juntar todas as forças pra vencer essa maré
O que era pedra vira homem
E um homem é mais sólido que a maré.”

Nascida na fase mais repressiva da ditadura militar brasileira (que regeu o país de 1964 a 1985), a canção ajuda a pensar no actual estado de sua democracia.

Mesmo com a catastrófica gestão da pandemia e sob suspeitas de ligação com milicianos, desvios de fundos públicos e interferência ilegal em órgãos de Estado (que o célere ex-juiz e agora ex-superministro Sérgio Moro demorou quase um ano e meio para perceber), Bolsonaro ainda tem apoio de até 30% nas sondagens de aprovação. É expressivo.

Bolsonaro, seus filhos e seu chamado “gabinete do ódio” — com bots e influenciadores reaccionários que promovem fake news e assassinatos de reputações — personificam o gaslighting do obscurantismo.

Direitos humanos? “Coisa de vagabundo”. Índios, “menos humanos” que o resto da população. Armas, militares e segurança acima de tudo, Deus acima de todos. Xingamentos sistemáticos a adversários. Exaltação de fake news como ícone da liberdade de expressão. Obsessão homofóbica e frases como “Prefiro filho morto em acidente a um homossexual”. Veneração a torturadores e à repressão do regime militar. Conivência com diatribes racistas e xenofóbicas de apoiadores.

Bandeiras de Israel são empunhadas em actos a favor de um presidente cujo secretário de Cultura caiu por realizar um vídeo de narrativa nazifascista e estética à la Goebbels. E seguiam no ar quando o Governo parafraseou o lema “O trabalho liberta” numa campanha pela reabertura económica em plena pandemia, como os Arbeit macht frei que ainda recepcionam visitantes nos (antigos) campos de extermínio nazistas.

Com o agravamento da pandemia (que sumariamente ignora), Bolsonaro acirra. Minimizou agressões a jornalistas por apoiantes. Tolerou uma marcha com máscaras e tochas diante do Supremo Tribunal Federal – ecoando nazis, a Ku Klux Klan e os neofascistas de Charlottesville. Protegeu o ministro da Educação, Abraham Weintraub, que se comparava a vítimas do Holocausto após ter sido criticado por exortar a prisão de todos os juízes do Supremo. Legitimou protestos com bandeiras usadas por movimentos neonazis ucranianos. Fez referências abertas a frases repetidas por Mussolini. Passou a sugerir rupturas institucionais.

O bolsonarismo cresceu fomentando discursos constantes e virulentos que estavam nas margens. Até deixarem de estar. Iniciei a carreira de jornalista num período de visível ascensão de movimentos populistas-nacionalistas. Antes de Donald Trump ser eleito pensei que o obscurantismo mais radical não acabaria legitimado no debate político. Errei.

Mesmo hoje, vivendo em Portugal, onde vejo uma democracia saudavelmente institucionalizada, me impressionam alguns exemplos na política partidária.

Chama a atenção que, na Assembleia da República, há quem sugira confinar populações ciganas ou flerte com a ideia de as expulsar. Tampouco me parece trivial a falta de ênfase de dirigentes partidários contra manifestações neofascistas dos seus apoiantes. Mesmo jocosamente, há líderes que insinuam deportar uma deputada de origem guineense. E há quem chame todos os governantes do pós-25 de Abril traidores da pátria.

Ninguém está imune ao obscurantismo.

Se Bolsonaro eventualmente foi reconhecido como resposta democrática a anseios conservadores e justiceiros reprimidos no período pós-ditatorial, não resta dúvida de que apenas governa para o projecto que evoca diariamente.

É uma lição a guardar. Não pode ser normal.

No último domingo, 31 de Maio, o presidente partilhou o tweet de Trump que prometia “designar antifas como organização terrorista”, mesmo sem prerrogativa legal.

Vendo correntes amplas pela democracia que emergem, há quem aponte ironicamente ser fácil identificar quem é contra antifascistas: basta retirar o prefixo da palavra antifascismo. Faz sentido.

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