Provedora dá pistas para resolver IRS das pensões em atraso

“Nem tudo o que não é inconstitucional é justo” e, lembra a Provedora de Justiça, não é a Constituição que impede o Estado de melhorar a situação dos cidadãos lesados.

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A Provedora de Justiça foi juíza do Tribunal Constitucional Rui Gaudêncio

A Provedora de Justiça, Maria Lúcia Amaral, desafiou nesta quarta-feira os deputados a encontrarem uma solução justa que resolva definitivamente o problema dos pensionistas que ficaram anos à espera de lhes ser paga a reforma e, ao receberem os valores em atraso de uma só vez num determinado ano, são prejudicados em IRS saltando de escalão do imposto.

O Parlamento já adoptou em 2019 uma norma que permite aos pensionistas entregarem uma declaração de substituição para imputar os rendimentos dos cinco anos anteriores a esses períodos, em vez de os montantes recebidos com atraso contarem para o rendimento anual em que as pensões lhes são pagas. Só que a redacção da lei não resolve o problema de todos os que nos últimos anos se confrontaram com este problema, mas apenas de parte deles e, defende a Provedora de Justiça, é preciso voltar ao assunto.

Com a lei de Setembro de 2019 (em vigor desde 1 de Outubro desse ano), a administração tributária faz uma interpretação retroactiva, permitindo que os tais rendimentos relativos a anos anteriores possam ser imputados a anos em concreto, mas, por causa do princípio da anuidade tributária, apenas permite que assim seja para as situações em que os valores tenham sido pagos aos pensionistas a partir de 1 de Janeiro de 2019 e não antes dessa data.

Por exemplo, um pensionista que tenha recebido em Agosto ou Novembro de 2018 os valores que o Estado lhes devia não beneficiou da medida.

Ouvida no Parlamento nesta quarta-feira, Maria Lúcia Amaral deu algumas pistas aos deputados, convidando-os a adoptarem uma norma interpretativa que permita à Autoridade Tributária e Aduaneira (AT) não se cingir a esta possibilidade.

Recuar ao modelo que vigorou pelo menos desde 1988 até ao início deste século, entende, seria o mais justo, “em que cada pessoa seria tributada de acordo com os critérios vigentes ao ano em que recebeu os rendimentos”. Mas como isso poderá colocar entraves, disse ser preciso encontrar “um remédio para obviar a enorme injustiça que há”.

“Os rendimentos postos à disposição das pessoas com muitos anos de atraso são débitos do Estado. São rendimentos que o Estado devia pagar e não pagou a tempo e horas. E não são rendimentos quaisquer — são prestações sociais! São prestações sociais das quais depende a vida das pessoas! E é absolutamente iníquo que o Estado não só se atrase — como se atrasa —​ mas depois cobre, através da receita, aquilo que se atrasou. Ganha duas vezes! Não pode ser!”, alertou, falando da intersecção de dois problemas que têm motivado muitas queixas junto da Provedoria de Justiça.

A Provedora, defensora dos direitos dos cidadãos que se sentem lesados, disse que sempre que houve um diálogo sobre este assunto, era invocada a exigência da praticabilidade da tributação. Constitucionalista e ex-juíza do Tribunal Constitucional antes de ser escolhida Provedora de Justiça, Maria Lúcia Amaral recordou que “o princípio da praticabilidade tem de se coadunar com outros — tem de superar uma concordância prática entre este princípio e outro que seja mais favorável aos contribuintes”.

“Compreendo que a administração tributária — neste caso até com boa vontade — fez a interpretação que os seus quadros lógicos induzem que faça” mas, como “não é a mais justa”, entende que “pode ser contrariada [por decisão do legislador] com uma norma interpretativa”. Qual deve ser esse alcance? Cinco anos? Três anos? Sem querer condicionar a decisão dos deputados, referiu que os casos mais graves ocorreram nos últimos três anos.

Quando nos últimos anos fez recomendações para as regras serem revistas, lembrou agora, foi-lhe respondido que o Tribunal Constitucional já tinha dito que as regras não eram inconstitucionais. Mas, quanto a este argumento, contrapõe: “Nem tudo o que não é inconstitucional é justo por natureza. A Constituição é um grande quadro: permite que esse quadro seja concretizado de muitas formas. E há formas melhores e piores de o fazer. O poder político não está acantonado a viver num mundo a preto e branco com uma dicotomia feroz entre o que é inconstitucional e o que não é, sendo que aquilo que não é inconstitucional tudo vale e tudo se equivale. Não, não! Dentro da latíssima acção que os senhores [deputados] têm, de tudo o que não é inconstitucional, há muitas gradações do que é melhor ou é do que é pior, do que é mais justo ou do que é menos justo”. Em síntese: “A Constituição não impede que o Estado tente melhorar a situação dos seus concidadãos. Não impede.”

Além desta questão, a deputada do PSD, Clara Marques Mendes, chamou a atenção para o facto de alguns pensionistas prejudicados estarem a ser lesados não apenas por “recebem a tarde e a más horas”, mas também noutra dimensão. Como os atrasos condensam os pagamentos num momento que faz aumentar o rendimento num determinado ano (mesmo que o valor cobrado em IRS seja maior do que aquele que seria se os montantes tivessem sido pagos nos tempos devidos), há cidadãos que podem estar a perder acesso a “determinados apoios sociais” e isso “não é recuperável”. Uma observação que mereceu concordância da provedora.

À Provedoria chegaram 923 queixas em 2018 relacionadas com atrasos do centro nacional de pensões na atribuição de pensões de velhice, invalidez, sobrevivência; em 2019 houve 1721 queixas em 2019; e já este ano, até 31 de Maio, deram entrada 339.

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