China aprova imposição da lei de segurança nacional em Hong Kong

EUA ameaçam tirar ao território o estatuto especial nas relações económicas e juntam-se a Austrália, Reino Unido e Canadá nas críticas a Pequim. Oposição pró-democracia classifica a lei como o início do fim das liberdades em Hong Kong.

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A nova lei foi aprovada na China, depois de ter falhado no parlamento de Hong Kong EPA/ROMAN PILIPEY

A China aprovou, esta quinta-feira, uma controversa lei de segurança nacional em Hong Kong, que Pequim diz ser necessária para devolver a estabilidade ao território semiautónomo e que a oposição pró-democracia vê como o início do fim das liberdades dos cidadãos. Já depois de terem ameaçado, na véspera, pôr fim ao estatuto especial das suas relações com Hong Kong, os Estados Unidos juntaram-se a Reino Unido, Austrália e Canadá numa condenação conjunta da posição da China face um “bastião da liberdade”.

“A imposição da nova lei de segurança nacional em Hong Kong entra em conflito directo com as obrigações internacionais da China”, lê-se num comunicado conjunto dos quatro países. “Aprovar esta lei em nome de Hong Kong, sem a participação da sua população, legislatura ou poder judicial compromete claramente o princípio ‘Um país, dois sistemas’, segundo o qual é garantido um alto grau de autonomia a Hong Kong”.

Na prática, o Congresso Nacional do Povo – o equivalente a um Parlamento – aprovou apenas a decisão de aplicar uma nova lei de segurança nacional ao território de Hong Kong; agora, o documento será trabalhado e deverá entrar em vigor nas próximas semanas.

Ao contornar a autoridade do Conselho Legislativo de Hong Kong, que não conseguiu aprovar uma lei semelhante devido à oposição pró-democracia, a China é acusada de ferir de morte a Constituição do território. Desde a passagem do Reino Unido para a China, em 1997, e à semelhança do que acontece com Macau, Hong Kong tem um elevado grau de autonomia, principalmente em termos de liberdades individuais e independência do sistema judicial.

A aprovação da lei de segurança nacional, com o argumento de que é preciso punir os organizadores dos protestos violentos que têm ocorrido em Hong Kong nos últimos tempos, põe em risco essa autonomia.

“Na China, eles nunca definem com precisão o que significa ‘segurança nacional’. Por isso, a lei pode mudar de acordo com as necessidades políticas”, disse Johannes Chan, professor de Direito na Universidade de Hong Kong, ao canal público RTHK.

O governo de Hong Kong insiste em garantir que a nova lei de segurança nacional destina-se apenas a “um pequeno grupo de pessoas”, e que a esmagadora maioria dos cidadãos e dos estrangeiros que trabalham no gigantesco centro financeiro vão poder fazer as suas vidas com normalidade.

Uma garantia que Johannes Chan classifica como “ingénua”, e que outros activistas dos direitos humanos também rejeitam.

“O Partido Comunista Chinês quer fazer passar a ideia de que está a cumprir a Lei Básica, mas não está”, disse Frances Eve, da organização Defensores dos Direitos Humanos Chineses, citado pelo jornal Guardian, referindo-se ao documento constitucional que garante a Hong Kong uma elevada autonomia em relação à China.

“Estão a impor uma lei draconiana que pode ser usada para silenciar a dissidência em Hong Kong e violar as liberdades garantidas aos cidadãos”, disse Frances Eve.

Defesa da soberania

Do ponto de vista da China, a nova lei tem apenas um objectivo: defender a sua soberania nacional. Em declarações ao PÚBLICO, Ferran Pérez-Mena, especialista em Extremo Oriente da Universidade de Sussex (Reino Unido), defende que para se perceber verdadeiramente o que está em causa, é necessário dar relevância ao simples facto de Hong Kong fazer parte do território chinês. Uma noção básica que, diz o investigador espanhol, às vezes é esquecida nas análises que lê na imprensa internacional.

“Lendo os meios de comunicação dominantes, quase chegamos a pensar que Hong Kong é um Estado-nação independente da China. Um Vietname ou um Afeganistão. A realidade é muito mais prosaica: Hong Kong é a China”, considera Pérez-Mena, que sublinha, no entanto, que “a China não é nenhuma vítima”. “Mas para entendermos a defesa chinesa da soberania nacional em Hong Kong, temos de entender os elementos centrais”, acrescenta.

Estes “elementos centrais”, explica o investigador são, por um lado, o entendimento chinês de que “Hong Kong se converteu numa via” para os chamados países liberais – como os EUA ou o Reino Unido – poderem “desafiá-la” no palco internacional e, por outro, o receio do impacto “do caos e da desordem” na sua unidade nacional.

“As recordações do caos e da desordem que atingiu a China entre 1911 e 1949, quando tinha um estatuto de semicolónia, foram traumáticas”, recorda Pérez-Mena. “O caos não é aceitável e por isso esta manobra da China procura evitar qualquer cenário que desemboque numa situação de desordem, que possa pôr em perigo a unidade do Estado chinês.

Tensão EUA-China

A imposição da lei de segurança nacional promoveu ainda o mais recente capítulo na batalha entre os EUA e a China numa guerra mais abrangente pela liderança mundial.

Primeiro com a revisão dos acordos comerciais entre os Estados Unidos e a China, e depois com a mais recente troca de acusações sobre a origem e a gestão da pandemia do novo coronavírus, os dois países tornaram público um confronto com vários anos, que precede a eleição de Donald Trump e a chegada ao poder de Xi Jinping. O objectivo, por parte da Casa Branca, é conter a ascensão da China ao estatuto de grande potência mundial equiparada com os Estados Unidos.

Na quarta-feira, o secretário de Estado norte-americano, Mike Pompeo, anunciou o passo seguinte nessa batalha, antecipando o fim das relações económicas privilegiadas entre os Estados Unidos e Hong Kong, num duro golpe para o importante centro financeiro mundial.

“Nenhuma pessoa razoável pode afirmar que Hong Kong mantém um alto grau de autonomia face à China, tendo em conta os factos no terreno”, disse Pompeo. “Os EUA esperavam que Hong Kong livre e próspero fosse um modelo para a China autoritária, mas é agora claro que a China está a remodelar Hong Kong à sua imagem”, afirmou.

Para Ferran Pérez-Mena, esta nova fase do braço-de-ferro entre China e EUA pode ser perigosa para Washington, se for mal gerida.

“A estratégia dos EUA é cortar com as redes de capital que alimentam a China e com as cadeias globais de produção que estão ligadas ao desenvolvimento económico chinês. Mas até que ponto isto é fazível?”, questiona o investigador. “É possível que se os EUA renegarem à sua própria globalização e a entregarem à China, acabem numa posição de subalternidade”.

Já sobre o endurecimento do discurso dos países europeus sobre Pequim nos últimos meses, também por causa das críticas à falta de transparência na contenção do surto em Wuhan e à “diplomacia das máscaras” chinesa, Pérez-Mena diz que haverá mais pragmatismo quando vier uma crise económica.

“Poderemos ver mais apoios a Hong Kong. Mas o limite das críticas à China chegará quando as economias estiverem em risco de colapsar por falta de capital chinês”, diz o académico. “Países como a Alemanha conhecem bem esta dinâmica”.

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